Existe uma grande tradição entre os jogadores de RPG de registrarem as aventuras que vivem com os seus personagens, seja por mera diversão, seja com a intenção de futuramente transformar a história num livro.
Pouquíssimos chegam ao livro.
Eu já fui um desses jogadores, e tenho algumas aventuras que joguei registradas, mas que eu nunca consegui compilar numa obra literária. O desejo ainda existe, ainda que algumas estejam pela metade. Ali existe material fértil para a criação de boas histórias de aventura. Um dia me debruçarei sobre este material e as lembranças que eles trazem de bons momentos entre amigos.
Mas não é uma tarefa fácil.
O que é narrado em uma aventura de RPG não é uma história pronta para o consumo. É um material bruto com uma trama básica, algumas cenas, esqueletos de personagens e poucos diálogos aproveitáveis.
É o que um escritor precisa para começar a compor uma história coesa, mas nada além disso. Um solo fértil e algumas sementes.
Essa tradição vem de longe e certamente do fato dos jogos de RPG serem derivados da literatura de fantasia, então nada mais lógico que os jogadores, em geral fãs dessa literatura, desejarem não apenas viverem um simulacro dessa fantasia, mas também criarem por meio disso suas próprias obras fantásticas.
Vox Machina se une ao seleto grupo de aventuras de RPG que conseguiram de fato dar origem a uma obra interessante para o público. Dessa vez pelas mãos do Critical Role, um canal de YouTube e Podcast que transmite partidas de RPG jogadas pelos seus membros, muitos deles atores.
Eu adoro jogar RPG, mas nunca me chamem para assistir uma partida da qual eu não estiver participando. Eu acho chato pacas.
Não é um conteúdo interessante ou feito para ser assistido. É algo que só tem graça para quem está de fato participando. Mesmo que nestes canais que gravam e exibem partidas eles editem as partes realmente maçantes onde os jogadores consultam tabelas e debatem detalhes de regras com o mestre, aquilo ali não tem graça.
Como eu já disse, é apenas o material bruto que eventualmente pode dar origem a uma história envolvente.
Mas aparentemente eu sou exceção e o Critical Role, assim como outros Podcasts que seguem essa linha, possuem uma boa audiência e conseguiram produzir “A Lenda de Vox Machina”, a partir de uma de suas aventuras.
Eu cheguei a assistir um vídeo comentando sobre várias diferenças entre a animação e o que se deu na aventura de RPG. E não me surpreendi com a quantidade de cenas e eventos que foram alterados, seja para gerar mais drama ou emoção, seja para reforçar os temas abordados na animação.
Eu diria que criar uma história a partir de uma aventura de RPG é bem semelhante a escrever a biografia de alguma pessoa. Se formos assistir a vida da pessoa como de fato foi, ficaremos bem entediados quase o tempo todo, salvo por alguns breves momentos, e isso se esta tiver sido de fato uma pessoa interessante e de relevância para a história. Não à toa muitas biografias precisam ser romanceadas e os eventos narrados montados de maneira a traçarem uma narrativa que desenvolva os temas que o biógrafo identifica como cruciais na vida daquela pessoa.
E isso foi muito bem feito na adaptação de Vox Machina, mas com a sensibilidade de deixar alguns detalhes em falas ou ações dos personagens que nos lembram a todo momento que aquilo ali já foi uma aventura de RPG. E de maneira que jogadores de RPG conseguem ver a graça naquela passagem e lembrar de momentos engraçados quando jogou, mas não chega a afetar a experiência do público casual que não vai pegar a piada.
E espero que esta e outras produções semelhantes sirvam para instigar mais pessoas a jogar RPG.
Existe RPG para todos os gostos. O que importa é encontrar um grupo com o qual você se sinta à vontade para viver aventuras e mergulhar na fantasia.
Com o grupo certo você pode usar as partidas de RPG como ensaio para suas criações, como uma forma de enxergar o mundo por outros olhos, viver na pele de figuras bem diferentes de você e viver experiências que você nunca ousaria viver na sua vida.
Eu sei que para além de fazer amizades o RPG me deu mais habilidade criativa, novas perspectivas e visões de mundo, além de maior presença de espírito em situações de conflito. Se eu antes me desesperaria diante de certas decisões, eu hoje consigo ponderar com mais frieza e rapidez as minhas opções antes de agir.
O RPG é uma excelente terapia onde podemos dar vazão ao que há de pior e melhor dentro de nós num ambiente controlado. Tanto que é usado como ferramenta de tratamento por vários psicólogos. É uma excelente ferramenta para atores ganharem mais traquejo de improviso.
E vem sendo usado como ferramenta de ensino com vários livros instruindo professores sobre como usar mecanismos básicos de RPG em sala de aula para tornar o ensino mais interessante e mais eficaz para os alunos.
E foi a origem desta série com a qual eu me diverti muito assistindo.
Que venha a próxima temporada de Vox Machina!