Noite sem Lua

João estava deixando a Ribeira para trás, e o céu estava novamente iluminado pelas estrelas naquela noite sem lua, agora que as luzes das candeias ficavam para trás junto com as vozes de quem ainda ficara no local da roda jogando conversa fora com o velho mestre.

Agora os sons das ondas dominavam a noite onde até pouco tempo atrás os berimbaus e da percussão reinavam. Sua respiração parecia seguir o ritmo das águas indo e vindo enquanto as últimas gotas de suor escorriam pela testa, cada uma trazendo um sorriso aos lábios de João junto, cada uma a imagem daquela esquiva por debaixo de uma queixada matadora apenas para aplicar um martelo pegando seu oponente no contrapé. Em seguida fugindo do pisão com um macaco emendando num xangô. Ver o mundo rodando e sorrindo.

O resto dos capoeiras já ia longe e João seguia seu caminho solitário de volta para casa.

A escuridão pouco importava pois o caminho ele poderia seguir vendado, guiado pelo aroma dos roseirais que floriam às margens da trilha e pelo ocasional espinho que sorrateiramente espetava seus pés descalços e calejados contra os quais espinhos não eram mais que mosquitos.

Um zumbido intermitente chamou sua atenção.
Não era de mosquito, mas de gente que resolve seus problemas à espreita na escuridão.
Poderia ser alguém da roda?
Hoje João tocou mais do que jogou e não jogou ninguém no chão.
Talvez devesse ter segurado menos o pé na roda, porque alguém estava querendo saber do que ele era mesmo capaz.
– Ogum, rogai por nós. – sussurrou João antes de ser interrompido por um novo ruído que antecipou o surgimento do seu algoz.

João mal conseguiu se colocar de frente para o vulto, como se guiado por seu orixá que tudo enxergava.

Pelo ardor no braço e o calor do sangue escorrendo João não precisava enxergar a navalha para saber que fora por pouco que ele não estava agora estirado no chão com sangue esvaindo pelo pescoço depois daquele carinho.

– Nunca ficará sem resposta àquele que nele crê… – continuou João por entre os dentes enquanto tentava vislumbrar o movimento do vulto e assim saber qual seria o próximo golpe. O vulto que pareceu surpreso por um breve momento ao ver João ainda de pé.

Se foi uma estrela que brilhou mais forte ou uma nuvem que se afastou no momento certo, João nunca saberá, mas aquela tênue luminosidade foi tudo que ele precisou para ver o vulto mais nítido no momento em que ele gingou para a esquerda e desferiu uma benção que derrubaria João sobre um roseiral.
– Ogunhe, meu pai! – exclamou João ao esquivar para a direita, deixando o vulto passar para trás de si e em seguida, confiando no seu orixá, desferiu o bote certeiro com uma meia lua acertando a têmpora do seu adversário.

João olhou o corpo caído por sobre o roseiral. Seus membros ainda se movendo com espasmos involuntários.
Ele seguiu adiante pela noite sem lua, se o vulto voltasse a andar ele logo saberia sua identidade, noutro dia.
Mais uma história para contar, e quem sabe cantar, na próxima roda lá em Maré onde a luz das candeias vão iluminar seus caminhos de fé.

FIM


Este conto foi escrito com inspiração em duas letras de música de capoeira.
A homônima do Mestre Toni Vargas “Noite sem Lua”, e a outra de autoria desconhecida por mim “Sinhá”.

São duas belas músicas que suscitam muitas imagens, dentre as quais apenas algumas eu traduzi para este pequeno conto.

P.S.:
Para quem não está familiarizado com a capoeira, segue a descrição dos golpes narrados.

– Meia Lua – https://www.youtube.com/watch?v=2PTkgrZ3Q7A
– Benção – https://www.youtube.com/watch?v=fCJ1rTO5Xbw

A Meia lua descreve um arco no ar e tem como finalidade atingir o oponente com o calcanhar.
A Benção é um empurrão do adversário com a sola do pé.

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