Confira abaixo mais uma página da minha coletânea Unay, publicada em 2018.
Desta vez será da HQ “Fuga” desenhada pelo João Miranda.
Se quiser ver a outra página que já postei, clique aqui.
Primeiro o roteiro como foi escrito por mim:
Página – 4
Quadro 1: Voltamos no tempo para mais cedo naquela mesma noite.
Tomada aberta mostrando o interior da senzala. Os escravos, uns 40 entre homens mulheres e crianças, estão fazendo um grande batuque ao redor de uma fogueira. Eles cantam, dançam, batem palmas e batem tambores. Aquilo certamente não é uma comemoração a julgar pelos seus rostos, todos sérios e compenetrados. Ninguém está sorrindo.
Uma mulher, uma negra feiticeira usa um turbante e comanda o rito no meio da roda de dança. Ela está ao lado da fogueira e diante de José. Ela está com as duas mãos apoiadas nos peitos de José. As palmas das mãos estão coladas no peito do rapaz, mas as pontas dos dedos dobradas como garras, como se quisesse cravar os dedos no corpo do rapaz. Ambos estão com os olhos fechados mas enquanto o rapaz tem uma expressão serena o rosto da mulher está contorcido devido ao grande esforço de concentração que está fazendo naquele ritual, enquanto entoa uma reza em um linguajar africano há muito esquecido.
A senzala tem apenas uma porta que é na verdade uma grade de ferro com um grande cadeado e todas as janelas possuem barras de ferro.
Capriche nas onomatopeias do batuque que deverão estar presentes nos próximos quadros.
Narrador – Algumas horas atrás.
Feiticeira – Ẹmi buburu lati yi ara ti iranṣẹ rẹ ati awọn ti o ni agbara lati gbẹsan awon ti o ti ßä wa.
(Espírito maligno entre neste corpo de teu servo e dê forças para se vingar dos que nos fizeram mal.) Esta tradução pro português não deve ser incluída. Coloco aqui apenas para registro, pois o texto acima, em yorubá, eu escrevi a partir de uma tradução no Google e provavelmente contém erros, mas serve para compor o clima, seu significado específico é irrelevante, basta que o leitor tenha a clara noção que tratam-se de palavras de um ritual mágico africano.
Quadro 2: O capitão do mato está observando de longe aquele ritual na senzala ao lado de dois jagunços. Os dois jagunços estão apreensivos e o capitão do mato está irritado. Os três ainda têm os olhos fixos na senzala e estão sendo iluminados pela luz que vem de lá de dentro.
Capitão do mato – O que essa negrada tá aprontando?
Jagunço #1 – Não sei não senhô. Eles começaram tem pouco tempo.
Jagunço #2 – Nunca vimo eles assim.
Capitão do mato – Eles vão é se mata quando a senzala pegá fogo. E o barão vai arrancá o nosso couro se a gente dexá isso acontecê.
Quadro 3: Close no Capitão do mato.
Capitão do mato – Juntem o resto e vamo dá um coro nessa bruxa safada e no resto da negrada preles aprendêre quem manda aqui.
Agora a página desenhada pelo João:
Esta página 4 é um belo exemplo de como a coisa pode se transformar.
Logo de cara o João me demoveu da ideia de usar o yorubá do Google. Seria indiferente para quem, como eu, não entende o idioma, mas um desastre para o eventual leitor que tenha algum conhecimento do mesmo.
Minha ideia era dar um toque de realismo, mas tudo tem limite, então o João se encarregou de criar os caracteres guturais da feiticeira.
Eu escrevi estes roteiros antes de ter ideia de quem os desenharia, e definitivamente não esperava encontrar algum desenhista com um estilo de layout tão particular. E nesta página é onde podemos ver bem a distinção de um roteiro pensado para um layout mais tradicional e o resultado na mão de um desenhista não ortodoxo e que sabe explorar a narrativa gráfica.
Imaginei um grande quadro mostrando a cena dentro da senzala e dois quadros menores com o exterior. Geralmente o sonho de muitos desenhistas, poucos quadros e espaço para soltar a mão. Mas o João decupou o primeiro quadro e mesclou o diálogo do segundo quadro nesta decupagem tornando a cena muito mais dinâmica e intensa, traduzindo muito melhor o clima de tensão e simultaneidade.