Tupiniquins

Introdução:

Finalmente uma história minha!
A primeira a ser postada neste blog, mas não se trata ainda de material novo de fato.
Esta história foi escrita alguns anos atrás.
Ela mistura: Aventura, fantasia, ação, ficção científica e humor.
A história tem como base o universo da Intempol, criado por Octávio Aragão e que ganhou vida não apenas nos contos do próprio, mas também pelas criações de diversos outros autores nacionais. Algo bem interessante que acompanhei de perto.
A empolgação foi tanta que rendeu inclusive algumas HQs e uma ambientação de RPG. Só faltou mesmo um filme ou um desenho animado.
Nas HQs destaco a adaptação do conto A Mortífera Maldição da Múmia, da qual participei e que se mostrou numa excelente experiência.

Adendo de junho de 2021: A Intempol é uma polícia temporal feita aos moldes dos guardiões do tempo do Asimov em O Fim da Eternidade e como comparação mais recente, a TVA da Marvel que vemos na série Loki. Porém, ao invés de funcionários dedicados e com um bom senso de compromisso, a Intempol parece contrarar seu pessoal direto dos piores quadros do serviço público brasileiro, até porque é sediada no Brasil. Ainda que possua pessoas e agentes competentes, cada um à sua maneira, a Intempol roda num fluxo muito mais frouxo do que suas contrapartes.

Esta história em particular seria mais uma HQ da Intempol. Eu e o Rodrigo Martins pensamos na ideia inicial em conjunto e eu fui desenvolver o roteiro. Me empolguei tanto que escrevi logo em prosa para roteirizar posteriormente. Mas os fatores tempo e dinheiro impediram que a HQ fosse realizada, sequer o roteiro ficou pronto. No fim a história não saiu e ficou guardada.

Em postagens futuras falarei mais sobre a Intempol e o que conheço de ficção científica nacional.

Eu classificaria este meu trabalho como um conto, a princípio, mas escrevendo este post decidi pesquisar e verificar de fato se existe alguma distinção, que não tamanho, entre: conto, romance, novela, etc… Me deparei com esta definição que me parece satisfatória e mais lógica.
Então creio se tratar de um romance o que escrevi. Ainda que pequeno.

Romance este que será postado aos poucos, semanalmente, em capítulos, episódios ou fascículos. (O último link é apenas uma associação direta, nada a ver no contexto).

Esse “esquartejamento” não deve atrapalhar a leitura, mas sim, tornará a leitura no blog menos cansativa. Imagino. E, a quem estou enganando? Obrigará meus fiéis leitores a voltarem aqui no blog toda a semana. Os infiéis esperarão alguns meses para ler tudo, de uma só tacada.

De qualquer forma espero que gostem.

Num corredor escuro, dois homens em ternos pretos estão de pé lado a lado, um deles com uma prancheta nas mãos; verifica uma lista de nomes.

Na direção do bloco infindável de celas, passam vultos cabisbaixos, um grupo incomum e heterogêneo. Nada fora do esperado neste lugar.

– Pedrinho…

– Taí.

– Marquês de Rabicó…

– Também.

– Tia Nastácia…

– Bem aqui.

– Dona Benta…

– Até ela!

– Visconde de Sabugosa…

– Na mão do garoto.

– Narizinho…

– OK.

– Emília…, garota! Onde é que tá a sua boneca?

Emília, com lágrimas nos olhos, ergue seu rosto na direção do homem e diz:

– Não sei. Sumiu.

– Puta qui pariu, Macedo! Foi você quem verificou os prisioneiros quando foram capturados!

– Eu bem que procurei, mas que diferença faz? É a porra duma boneca!

– Mas tá aqui na lista!

– Vê se ela não enfiou no bolso!

– Quando o chefe descobrir nós tamu fudido.

***

?!

***

O ambiente em que Emília se via em muito contrastava com o do sítio.

Paredes próximas a rodeavam de todos os lados exceto um onde uma porta de ferro de um lado e uma minúscula janela com grades do outro, por onde a lua minguante quebrava suavemente a escuridão e de onde vinha uma brisa salobra que aliviava o odor que britava de algum canto.

– Quem… q-que é isso? – Uma voz indaga de um canto onde um vulto se distingue em meio à penumbra.

– Isso não! Mais respeito! Veja lá! – a boneca respondeu. – Quem é o senhor?

– Meu Deus do céu! Estou alucinando ou é mesmo uma boneca que me dirige a palavra?!

– Sou sim senhor uma boneca! – Respondeu Emília colocando as mãozinhas na cintura e erguendo o queixo. – Por quê? Nunca viu uma boneca falante? Agora seja mais educado, e se apresente!

O vulto rastejou de quatro para perto da boneca, onde a luz do luar, que entrava pela pequena janela do recinto, permitia distinguir suas feições. Eram de um homem de cabelos grisalhos. As marcas da idade no rosto ressaltadas pela sujeira que o cobria e a barba revolta de semanas certamente acrescentavam mais alguns anos à figura.
De olhos arregalados a ponto de refletirem o luar denunciavam que ele ainda não havia se convencido do que via.

– M-me chamo Policarpo.

– Muito bem. E o senhor seu Pó de Caco poderia me dizer por que mora num lugar tão sujo, escuro e…

– Policarpo, Policarpo Quaresma.

– Que seja. Mas onde estamos? – Emília voltou a indagar enquanto girava os olhos ao ver o tal Policarpo se beliscando.

– Se ainda não reparou, isto é uma cela de prisão. – Respondeu Policarpo esfregando o braço beliscado após se convencer de que aquela conversa era mesmo real.

– Ora, uma cela! Vejam só! E por que o senhor Pó de Caco está preso? – Indagou a boneca, se afastando um pouco de Policarpo, por via das dúvidas, enquanto buscava de soslaio uma rota de fuga. – Seria o senhor um homem perigoso?!

– É Policarpo. E não se aflija; não sou adepto da violência.

– E por que o senhor está preso, então?

– É uma longa história. Basta dizer que fui acusado injustamente pelo traiçoeiro Floriano.

Conte-me tudo, senhor Pó de Caco.

Policarpo girou seus olhos procurando relevar a petulância de Emília e em seguida sentou-se defronte a boneca meio inclinado sobre uma das mãos que ele repousou no chão de pedra coberto com restos de palha e serragem. E disse.

– Eu gostaria, antes, de saber o que a senhorita está fazendo aqui.

– Tenha calma e não me chame assim de senhorita, pois sou casada, e muito bem casada, com meu esposo, o Marquês. Mas vejamos… Por onde começar?

Policarpo está surpreso, que será que a boneca tem na mão?

– Posso dizer que tudo começou quando minha dona, a Narizinho, me jogou debaixo de um monte de palha atrás do curral da vaca, no momento que uns homens estranhos de roupas escuras surgiram de todos os lados correndo.

– Mas que bando de vândalos! – Exclamou Emília franzindo as sobrancelhas.

E então ela desatou a falar num só fôlego.

– Escutei barulho de coisa quebrando, e o Marquês se pôs aos berros, provavelmente porque lhe pisotearam a horta e suas abóboras. Ainda por cima, fiquei toda suja! Bem que a Narizinho podia ter me empurrado para dentro de um lugar mais limpo! Espera! Foi aí que percebi, pelos ruídos, que ela tinha sido capturada pelos malvados! Mas certamente a Tia Nastácia os poria pra correr a vassouradas. Ledo engano, em pouco tempo tudo se colocou no mais completo silêncio, e só então consegui me livrar do monte de palhas sobre mim. Corri para entrar na casa, pela entrada dos fundos. Parecia que um furacão havia surgido bem ali dentro. Estava tudo revirado, e nem sinal de viva alma. Nem o Pedrinho, nem o espigão, nem a vovó! Ninguém em canto algum. Lembrei então do pó de pirlimpimpim que tinha guardado. Puxei do meu saquinho com pó de pirlimpimpim, de um de meus bolsinhos do vestidinho que minha dona me costurara. Mas, por mais que tentasse, não conseguia ir à parte alguma, de alguma forma meus amigos estão fora do alcance do pó. Finalmente, me cansei de buscar por eles e sentei-me aflita e pensativa tentando buscar um meio de descobrir seus paradeiros. Até que… Não sei se escutei algo, seja lá o que tenha sido, minha intuição me deu a certeza de onde deveria ir para buscar ajuda!  Aspirei um pouco e FIUM surgi bem aqui!

***

           Policarpo havia se quedado boquiaberto com a rapidez com que a boneca narrara algo tão absurdo. Mas era uma boneca de pano quem lhe contava, portanto assim que ela terminou, ele sacudiu a cabeça saindo do transe em que imergira ainda prostrado no chão de joelhos.

– Está me dizendo que esse tal pó de pirlimpimpim a fez chegar aqui?!

– Pois é. Sabia que isto haveria de ser útil um dia. Por mais que o Pedrinho encrencasse comigo se me visse com esse bocado de pó de pirlimpimpim. “Arteira como é acabará aprontando uma com isto!” Ele teria dito. Mas fiz bem, com isso posso salvá-los. Basta pensar bem onde buscar ajuda.

– Mas porque justo aqui? E justo eu?

– O senhor está disposto a me ajudar?

Policarpo então parou e pensou por um momento cruzando os braços ainda sentado no chão e de pernas cruzadas. Aproveitou para se beliscar mais uma vez.

– Até poderia ajudá-la… – Ele respondeu esfregando ambos os braços.

– Então vim ao lugar certo. – Respondeu a boneca sorridente.

– Mas, como pode ver, estou preso, a menos que possa nos tirar daqui com esse seu pó mágico.

– Isto seria possível, sim. Mas para onde iríamos? Estou aqui para buscar meus amigos!

– Nisso tens razão… Então avaliemos o problema. Pelo que pude perceber, você não faz ideia de quem sequestrou seus amigos.

– Digo-lhe então que em muito suspeito de homens do governo.

– Como?

– É uma infelicidade de nossos tempos. Eu também uma vez já confiei na integridade da República e de nossos líderes, mas, como pode ver, hoje estou preso. O mais incrível é que meu único crime foi ter almejado o melhor para a nação!

– É mesmo uma pena, mas o que isto tem a ver?

– Ora, não seja ingênua! Eu também o era até pouco tempo, mas pude observar que em iguais apuros muitos outros se encontram. Talvez vocês tenham feito algo contrário aos planos de Floriano.

– Não sei se este seria o caso.

– Tive uma ideia!! – Exclamou Policarpo erguendo um dos punhos cerrado e olhando altivo para o teto com um ligeiro sorriso no canto dos lábios. – O que a senhora marquesa necessita é de um valente herói de índole imaculada! E não posso pensar em ninguém melhor que um representante do povo mais nobre que nessa terra habita. Um valoroso guerreiro índio!

– E desde quando um índio seria capaz de nos ajudar a resgatar meus amigos? – Ela disse torcendo o canto dos lábios e as sobrancelhas junto com a cabeça.

– Até momentos atrás eu não pensava que bonecas pudessem falar.

– No mesmo momento, a boneca estufou o peito, franziu as sobrancelhas e abriu a matraca aos berros erguendo uma das mãos com o dedo em riste.

– Mas como ousa?! Pois saiba o senhor… – Nesse momento Policarpo agarrou a boneca e com uma das mãos tampou-lhe a boca, com a outra colocou o dedo nos lábios.

Passos do lado de fora, aproximando-se da cela. A pequena janela da porta da cela se abriu, deixando à visto os olhos de um carcereiro, meio cerrados, tentando enxergar dentro do interior da cela.

– Que se passa aí?

– Na-nada seu guarda. Apenas tive um sobressalto durante o sono. – Respondeu Policarpo.

– Pois fique quieto! – O carcereiro disse fechando a janelinha em seguida. Seus passos se afastando, seguindo sua ronda.

– Por favor, fale baixo ou seremos flagrados aqui! Posso soltá-la? – Sussurrou Policarpo.

A boneca fez que sim com a cabeça e os olhos arregalados de susto.

– Temos de agir rápido antes que amanheça e venham me ver. – E, dizendo isso, Policarpo largou a boneca.

– Nunca mais ouse me agarrar assim! – Ameaçou Emília, ainda com o dedo em riste, mas tomando distância de Policarpo e mantendo baixo o tom de voz.

– Certo, mas vamos logo que o tempo urge. Ainda não creio de todo nesse tal pó de pirlimpimpim, mas, dadas as circunstâncias, vale a tentativa.

– E o senhor conhece algum? – Ela indagou erguendo uma das sobrancelhas ao mesmo tempo em que inclinava a cabeça para trás e para o lado.

– Índio? Ora, não! Mas se pudesse nos levar à presença de um verdadeiro representante dos Tupi ou Guarani, eu poderia sem dúvida travar contato e interpelar a seu favor.  Modéstia à parte, já estudei bastante seus hábitos e idiomas.

A boneca abriu um grande sorriso, e exclamou. – Não me diga! Vejam só! Talvez não tenha sido mesmo de todo mal vir até aqui.

– Certo! Como faremos agora?

– Primeiramente, me diga onde pretende encontrar o tal índio, para que eu possa calcular o quanto de pó precisaremos cheirar.

– Penso no interior de São Paulo, próximo ao Paraná.

Ela pegou seu saquinho de pó e com cuidado despejou dois bocados idênticos nas pontas de seus dedos.

– Tome! É como cheirar rapé. – Ela disse oferecendo a ele um dos bocados.

– Rapé?

– Apenas aspire seu bobo! E não se esqueça de ter em mente onde quer chegar.

– A cela de Policarpo Quaresma é por aqui, mas o que os senhores desejam com aquele velho louco? Ei! Que bate papo é esse aí? – Era a voz do guarda que voltava, agora acompanhado por outros passos, para a porta da cela.

Policarpo apenas resmungou e olhou para a pitada de pó no seu dedo.

– Bolas, que seja pra melhor… – E, sendo assim, cheirou o pó que a boneca lhe dera.

Logo se percebia tratar-se de uma sala de tortura. Um pequeno recinto, iluminado por uma única lâmpada, cuja única saída era uma porta agora fechada.

– Hehehe! Pusemos o papagaio no lugar dele!!

Isso lá era verdade, só que o papagaio não partilhava do humor que os dois sujeitos, cujas feições se ocultavam nas sombras em torno da lâmpada, demonstravam.

Ele já estava amarrado de ponta cabeça naquele pau de arara há duas horas, e quase todas as suas penas lhe haviam sido arrancadas.

– E então lourinho? Vai o num vai contá onde tá o herói?

– Eu já disse que não faço ideia, faz tanto tempo…

– Ondié que tá o herói? – Berrou o outro sujeito. – A gente sabe que cê foi o último a ver ele, então diz logo, antes que a gente use isto em você.

O indivíduo ergue então dois fios desencapados próximos ao rosto do pobre papagaio.

– E garanto que a gente sabe escolher lugares especiais mesmo na anatomia de uma ave – completou o outro.

– Eu já disse que só sei que quem vocês procuram é um sujeito alto, loiro, de olhos azuis…

– Disso, a gente já sabe! Vamo vê, se cum certo estímulo cê começa a falá como um papagaio de verdade.

***

De imediato, Policarpo viu tudo turvo à sua frente, ou fosse lá qual era o lado para onde ele estava olhando. Sua cabeça girava com um zunido nos ouvidos.

FIUUM… Sentiu-se então leve como uma pluma. Logo notou que era levado pelo espaço como se carregado por um tufão.

Em questão de segundos sentiu-se caindo e, finalmente, havia terra firme aos seus pés.

A paisagem à sua volta aos poucos tomou forma quando sua visão foi retornando. Policarpo agora se via em meio a uma densa mata verdejante.

A seu lado estava a boneca de pé com as mãozinhas nos quadris e um ar inquisidor.

– E agora? O que faremos? Como vamos encontrar um índio em meio a todo esse matagal?

Policarpo sorria de orelha a orelha, os olhos arregalados e marejados. Mal podia crer. Estava mesmo livre, fora daquela cela fétida e, até onde lhe constava, bem longe das garras de seus condenadores.

– Não acredito! Funcionou mesmo! – E começou a dar pulinhos com os braços ligeiramente erguidos enquanto risadas tímidas escapavam de seus lábios. Sem se importar que agora à luz do dia seu estado decrépito era ainda mais evidente, todo encardido e com as calças e a camisa imundas e rasgadas.

Emília colocou uma mão na cabeça e girou os olhos e cortou a comemoração de Policarpo, que atestava algo, que era para ela, tão óbvio quanto o céu azul que se via por entre as copas das árvores. – É claro que funcionou! Este é o pó mais mágico que as fadas já inventaram. Mas diga logo que tenho pressa. É mesmo este o local em que pretendia encontrar o tal índio?

Policarpo interrompeu sua comemoração, baixou os braços e endireitou a coluna enquanto enxugava uma gota de lágrima que lhe havia escorrido dos olhos.

– Sim, é este o lugar de fato. Ao menos imagino que seja. Talvez estejamos próximos a alguma aldeia. Vamos andar por aí e acredito que, não tardará muito, encontraremos algo ou seremos encontrados.

– Assim espero.

***

***

– Francamente, estamos há horas aqui, e o senhor…, Sr. Pó de Caco, nem um indiozinho me encontra! – A boneca exclamou bufando enquanto descansava apoiando uma das mãos no tronco de uma árvore e batia um dos pés no chão.

– Sem dúvida está se saindo uma tarefa das mais árduas. Tinha fé que seu pó tivesse nos trazido para mais próximo de onde poderíamos encontrar algum índio. Se ao menos eu tivesse minha bússola ou meu relógio, poderíamos nos localizar com mais facilidade – lamentou Policarpo sentado em uma pedra coçando seu queixo e enxugando o suor que corria da testa.

– O mais provável é que o senhor, na verdade, não faz ideia de onde se encontrar índio algum, e por causa disso estamos perdidos! Já estou cheia; tenho que pensar onde encontrar ajuda de verdade e fazer melhor uso do que me resta do pó de pirlimpimpim.

– Então me responda uma coisa. Por que não usa este seu pó mágico para chegar até seus amigos e salvá-los de uma vez?

– Não consigo. Com a ajuda do pó posso visualizar qualquer lugar menos onde eles estão.

Com essas palavras, ela deu suas costas para Policarpo e se deparou com um ouvinte, até o momento, oculto.

– Policarpo se ergueu da pedra com um grande sorriso no rosto e os braços estendidos. – Ora vejam! Por fim! Já não era sem tempo! Um verdadeiro silvícola de nossa terra!

O índio era sem dúvida um guerreiro. Forte, mas já um homem de meia idade, ligeiramente grisalho, com uma pequena lança em punho, seu corpo pintado e trajando poucas vestimentas. Ele olhava para Policarpo e para a boneca com atenção de pé parado como uma sentinela.

– Será mesmo este um representante dos guaranis? – Se perguntava Policarpo. – Bom vamos ver se me lembro… Ah! Como eram mesmo as palavras?

Mas o recém chegado se adiantou e disse:

– Eu me chamo Peri. Quem é o senhor?

Emília, boquiaberta e com os olhos arregalados, observava o guerreiro desde seus 40 cm de altura. Ao ouvir o índio falar, recuou para perto de Policarpo Quaresma.

– Mas que surpresa, ele fala nossa língua! – Exclamou Policarpo.

– Assim tudo ficará mais fácil, né? – Disse a boneca. – Mas, pra começo de conversa, abaixe essa lança, senhor Peri.

– Não antes que se apresentem! Conheço muitas lendas de espíritos da floresta, só não imaginava que algum se parecesse com uma boneca.

– Olhaquí, seu…! – Policarpo, rapitamente tampou a boca da boneca e lançou um sorriso amarelo para Peri.

– Ora, não seja por isso. Eu me chamo Policarpo Quaresma e estou ajudando esta boneca que há pouco salvou-me a vida e… Bom, ainda não tenho muita ideia do que ela possa ser, mas, em caso de se tratar de um espírito, creio que seja este de boa índole, pois ela apenas busca ajuda e, também me livrou do cárcere.

Emília, que lutava nas mãos de Policarpo, parou de se remexer ao escutar tais palavras. Peri baixou sua lança e ensaiou um ligeiro sorriso.

– Acredito em suas palavras. – Disse Peri. – Já os observava há algum tempo escondido entre as folhagens. Pude escutar parte do que conversavam, mas ainda não compreendi o que vocês fazem aqui.

Policarpo soltou a boneca e pigarreando disse:

– Creio que posso lhe explicar…

– Não! Deixe comigo! – Emília deitou a falar e em dois tempos contou tudo o que lhe ocorrera desde que seu sítio fora invadido até encontrarem Peri. – E então? Que achou? Policarpo inclusive diz saber de um tal de Flor-de-Pano, que pode estar tramando tudo.

Peri apenas olhava com a testa franzida e o queixo ligeiramente caído, tentando tirar algum sentido e correlacionar os fatos narrados pela boneca, quando Policarpo interviu.

– Perdoe a pequenina. Pelo que pude observar, ela tem esse hábito de falar desenfreadamente, mas, para resumir, precisamos de um valoroso guerreiro disposto a nos ajudar nesta empreitada contra o poder opressor de Floriano.

Peri cruzou os braços olhando para o chão e disse:

– Desculpem, mas não faço a menor ideia do que estão falando; eu não tenho nada a ver com esses problemas do homem branco. Para dizer-lhes a verdade, já faz alguns anos que não vejo nenhum por aqui, desde o grande dilúvio. Com exceção da minha amada Ceci, com quem vivo.

– Sabia! Logo vi que essa ideia de jerico de vir procurar ajuda com índios não iria dar em boa coisa. – Resmungou a bonequinha. – Agora desperdiçamos tempo e pó de pirlimpimpim à toa.

– É uma pena, senhor Peri. – Disse Policarpo cabisbaixo ao ver que mais uma de suas crenças se confirmava um fracasso. – Não saberia nos dizer se algum dos de sua tribo não teria interesse em nos ajudar?

– Duvido; da minha tribo também não escuto há muito. Por aqui apenas vivemos eu, Ceci e nossos filhos. – Disse Peri começando a se afastar.

– Vamos então. – Disse Emília abrindo sua bolsinha de pó de pirlimpimpim. – Tenho uma ideia de onde poderemos encontrar homens dispostos a nos ajudar.

Ao ver o pó, algo estalou de súbito na mente de Policarpo e ele sorriu.

– Espere! Peri, tive uma ideia! Este pó que ela carrega é mágico, e pode nos levar a qualquer lugar em que nossa mente possa se concentrar. Se nos ajudar poderemos trazê-lo de volta até aqui ou até os braços de sua amada Ceci. Não é verdade?

– Sim, mas eu não vou mais precisar da ajuda desse selvagem. – Respondeu Emília. – Melhor deixá-lo aqui.

– Mas eu quero levá-lo! Algo me diz que nos será de muita ajuda. – Insistiu Policarpo. E voltando-se para Peri, completou.

– E então? Disposto a nos ajudar? Precisamos muito de sua ajuda. Mesmo após tudo que li, nunca imaginara tal paraíso como este em que vives, e é bem possível que, do jeito que as coisas vão, até esta sua morada venha a ser ameaçada.

– Sendo assim, acho que não seria problema. Até um dever meu… creio.

– Fabuloso! – Exclamou Policarpo abraçando Peri que torceu o nariz ao ser confrontado pelo ranço que o imundo Policarpo exalava.

– Muito bem. – Intrometeu-se Emília. – Já que estamos todos contentes, tomem aqui a quantidade do pó necessária para esta próxima viagem. Já sei bem aonde temos de ir em busca de ajuda real.

Policarpo e Peri pegaram com os dedos seus bocados de pó, enquanto Policarpo explicava como usá-lo ao índio.

– Apenas aspire tudo e concentre-se em seguí-la aonde ela deseja ir.

– Prontos? – Perguntou a boneca. – Então, aqui vamos nós!

***

FIUUM

***

Dessa vez, Policarpo já sabia o que esperar da viagem com o pó de pirlimpimpim, mas Peri assustou-se bastante com a ausência de peso e aquele zunido incessante.

– Não se preocupe meu amigo! – Disse Policarpo. – Pode ser um tanto desconfortável a princípio, mas esta é minha segunda viagem e já estou me acostumando.

– Para onde estamos indo? – Peri indagou com o rosto contorcido tentando lutar contra o desconforto.

– Boa pergunta, meu caro. Creio que nossa companheira poderá nos responder.

– Queremos um grupo de valentes e com esta viagem o pó que eu tinha está quase no fim. – A boneca explicou. – Portanto, precisamos ir aonde, sem dúvida, encontraremos ambos.

– E onde seria esse lugar? – Policarpo perguntou coçando o queixo.

Nesse instante, todos sentiram de novo os pés em terra firme. O ambiente que surgiu ao redor dos três foi o de uma estrada de paralelepípedos bem pavimentada, ladeada por belos campos e bosques de ambos os lados.

Era dia claro e, olhando a sua volta, Policarpo pôde observar que a estrada sumia no horizonte numa direção, e na direção oposta havia uma suntuosa cidade não muito longe. Era para lá que a boneca já caminhava.

– Vamos! O que estão esperando? – Emília disse mal olhando para trás enquanto gesticulava com seu bracinho chamando seus dois companheiros de viagem.

Foi então que Policarpo notou uma placa à beira da estrada, apontando para a cidade, com os dizeres: “Capital do Reino de Pasárgada”.

– Meu Deus! É Pasárgada! Ma-mas, como?! – Exclamou Policarpo.

– Ora, onde mais somos amigos do Rei? – A boneca respondeu sorrindo.

O papagaio já quase desacordado e sem penas, após satisfazer todo o sadismo dos dois homens, se esforçou para abrir um dos olhos e ver que alguém adentrava a sala escura.

– Senhor! Agente Macedo se apresentando. Acabei de retornar do Sítio e nem sinal da boneca. – Disse o agente meio esbaforido.

Foi então que se fez notar outro indivíduo, bem corpulento por sinal, nas sombras do fundo da sala, e que parecia observar toda a tortura desde o começo.

– Impossível! – Ecoou a voz grave da figura corpulenta. – É uma boneca que parece viva, mas é apenas uma boneca. Imbecis! Será que terei de mandar o grupo especial em uma missão tão idiota?

– Lamento informar, mas não é apenas isso. – O homem esbaforido respondeu como se pisasse em ovos. – Quando cheguei há pouco, também fui informado de que houve transgressões em duas LTAs (Linhas Temporais Alternativas), dentro de sua jurisdição.

– O quê?! – Rugiu a figura corpulenta se erguendo de onde estava e quase batendo a cabeça no teto da sala.

– É…? – Sussurrou o homem se encolhendo. – E-Em uma, parece que um idealista preso e condenado à morte sumiu pouco antes que dois dos nossos homens pudessem impedir, sem deixar rastros. Em outra o índio, cuja prole virá a formar o povo brasileiro, também desapareceu, e não é possível localizar qualquer um dos dois.

– Mas como? Temos o tempo a nosso favor! – A figura corpulenta explodiu gesticulou esbarrando as poderosas mãos nas paredes ao redor e fazendo todo recinto tremer.

– Os caras da técnica acham que pode estar sendo usado um outro sistema de deslocamento, totalmente desconhecido e impossível de se rastrear. – Respondeu o homem como se narrasse um páreo no jóquei clube já abrindo a porta para fugir da sala.

***

– Vocês são amigos do Rei daqui? – Perguntou Peri.

Policarpo, mal se dera conta da pergunta pois olhava atentamente para Pasárgada e para seus companheiros ainda descrente de que aquilo não se tratava de um sonho. Mas Emília não perdeu a oportunidade de falar, como de costume.

– E não é o que diz o poema? Certa vez, o visconde nos leu lá no Sítio. “Vou-me embora para Pasárgada, lá sou amigo do Rei…”.

– “…terei a mulher que quiser, na cama que escolherei.” – Completou Policarpo. – É, isso lá pode dar certo.

– Ainda não compreendo. Desconheço tal poesia. – Resmungou o índio.

– Não se aflija, caro Peri. – Disse Policarpo coçando sua barba e colocando uma mão sobre um dos ombros do índio enquanto sorria com confiança. – Afinal de contas, estamos aqui a princípio, para auxiliar a senhora marquesa e, me parece que, dentro de sua lógica, ela sabe muito bem o que está fazendo.

Assim sendo, puseram-se a caminho e em pouco tempo alcançaram os portões da cidade.

O visual de Pasárgada fazia o queixo de Policarpo descer um pouco mais a cada passo que dava. Conforme podiam distinguir mais detalhes daquela intrincada e heterogênea arquitetura que ia do rococó ao moderno, passando pelo art decó que se integrava às linhas arrojadas do futurismo, por vezes desafiando a física com o uso de materiais que Policarpo sequer imagina do que se tratavam. E ainda assim, era uma paisagem harmônica. Só vendo para entender.

Mesmo Emília, que já havia visitado lugares fantásticos, admirou-se com a beleza do lugar. Já Peri começou a sentir-se tonto por se ver cercado de edificações tão grandes, tantas cores e pessoas por todos os lados. Sentia falta do verde da mata.

– Peri, não fique aí que nem um bocó olhando para cima e andando em círculos. – Ralhou a boneca.

– Vamos, meu caro, vamos seguí-la. Este não é um bom lugar para nos perdermos, não podemos perdê-la de vista. – Disse Policarpo puxando o índio por um dos braços e tentando acalmá-lo.

Graças a uma sinalização impecável, logo chegaram diante de uma enorme construção, que sem dúvidas tratava-se do palácio real.

– Chegamos! – Exclamou Emília. – Vamos nos apressar e falar logo com o Rei!

Ela partiu em disparada para dentro dos jardins que cercavam o palácio, enquanto Policarpo e Peri tentavam acompanhar.

Em dois minutos chegaram às portas da sala do trono. Os três espiaram pelas portas que estavam abertas e, no outro extremo do grande salão, puderam vislumbrar o monarca de Pasárgada sentado ao trono e, a sua volta, alguns nobres e serviçais.

***

– Entrem! Estávamos a sua espera. – Disse um dos nobres.

A boneca aceitou o convite de imediato e caminhou ligeira para perto do trono. Foi então que Policarpo lembrou-se dos farrapos que vestia, sem falar na quase nudez de Peri, pouco apropriados para a presença de um Rei. Mesmo assim, ele e Peri entraram atrás dela, Policarpo tentando manter alguma compostura.

– Saudações majestade! Eu me chamo…

– Sei como se chama. – Completou o Rei, sorrindo. – Como não saberia seu nome se todos que aqui vêm são meus amigos?

– Fico lisonjeada em saber disso. Então já sabe por que viemos vê-lo?

– Os conheço, porém, não sou nenhum adivinho. Sinta-se à vontade de explicar o que os traz aqui.

– Ih, lá vamos nós… – Resmungou Policarpo para Peri.

 ***

Blablablabla…

***

– Uma história e tanto até agora – Concluiu o Rei, após escutar a boneca sem parecer se abalar com sua excessiva eloquência.

– Obrigada

– Então vocês necessitam de um exército, e mais pó de pirlimpimpim para seguir em busca dos seus amigos.

Os três companheiros assentiram com as cabeças, enfileirados lado a lado diante do rei.

– Para começar, não tenho nem nunca tive ou terei um exército. Não existem inimigos para combater em Pasárgada, portanto, nunca vi necessidade em manter qualquer tipo de força armada, isto os senhores devem ter notado, pois não cruzaram com nenhum guarda dentro ou fora de meu palácio.

– Temo lhes informar também que, para sua infelicidade, o restante do pó que existia aqui foi há pouco levado por dois homens. Eles quiseram oferecer uma grande soma de dinheiro em troca, mas acabei deixando que levassem de graça. – Concluiu o monarca com um enorme sorriso estampado no rosto, típico de quem ri de seus hábitos corriqueiros.

– Oh! Meu Deus! Mas, e agora? O que faremos? – Exclamou a boneca.

– Não se preocupem. Ambos saíram não muito antes de sua chegada, acredito que poderão alcançá-los antes que deixem a cidade.

– Mas, como os encontraremos em um lugar tão grande? – Indagou Policarpo.

– Isto não será problema, meus cidadãos são os mais solícitos e, se perguntarem pelas ruas, acabarão por encontrar os dois.

– Muito obrigado, vossa excelência, e já vamos indo antes que seja tarde.

– Mas, lembrem-se, depois que os encontrarem retornem à minha presença, pois ainda tenho algumas coisas para lhes falar. – Alertou o rei.

– Está bem! – Gritou a boneca já correndo para fora do grande salão.

Provou-se verdadeira a cortesia do povo local. Aos poucos e perguntando a várias pessoas nas ruas, conseguiram chegar a uma pequena hospedaria onde foi confirmada a presença de dois homens que haviam regressado do palácio real com grandes sacos de pó de pirliImpimpim.

– Quarto número 7. – Respondeu o dono da hospedaria com a felicidade estampada no rosto.

Agradecendo, os três se afastaram para um canto.

– Agora, temos de convencê-los a nos arranjar parte do pó, ao menos. – Disse Policarpo.

– Se me permitem, eu tenho um plano. – Respondeu Emília. – Só para caso deles não quererem ceder parte do pó.

***

Cinco minutos depois, Policarpo Quaresma procurava ajeitar suas roupas esfarrapadas  para parecer menos maltrapilho enquanto batia à porta do quarto número 7.

Emília já havia se posicionado do lado de fora da hospedaria e, com a ajuda de um caixote, se debruçou por um canto da janela e espiou por uma fresta na cortina.

Dentro do aposento havia três homens vestindo ternos escuros.

– Está na hora. Vamos embora antes que notem nossa ausência. – Disse o bem grisalho que parecia acabar de ajeitar a gravata diante de um espelho.

– Hahahaha! A melhor coisa que fizemos foi vir até aqui antes de todos! – Exclamou o baixinho, enquanto se inclinava com o peso de um saco.

– Vão na frente. Eu vou continuar a festejar aqui mesmo. – Disse o narigudo, sentado diante de uma mesinha e alinhava, sobre um espelhinho, três fileiras de pó de pirlimpimpim, usando para isso uma pequena lâmina afiada.

– Eu sabia que cê ia vacilar! – Vociferou o grisalho.

O narigudo pareceu não se importar e ignorando completamente o grisalho, começou a cheirar as fileiras de pó com um canudo feito do que parecia ser uma nota de dinheiro enrolado. Os outros dois já pareciam prontos para sair, mas o narigudo ainda estava apenas de camisa e calças. A boneca podia ver seu paletó e sua gravata sobre a cama.

Duas batidas na porta fizeram o grisalho engolir as palavras que estava prestes a proferir para o narigudo.

– Droga! – Exclamou o baixinho sussurrando após um instante palpável de silêncio entre os três.

– Vamos embora logo, antes que seja tarde. – Disse o grisalho com os olhos arregalados. Ele puxou tão rapidamente uma caixinha escura de dentro do terno que quase a deixou cair no chão.

– Cê tá ferrado quando o chefe descobrir! – Disparou o baixinho para o narigudo enquanto batia os dedos sobre uma caixinha preta igual à do grisalho.

Ambos com suas caixinhas em mãos bateram os dedos sobre elas uma última vez e num piscar de olhos já não estavam mais lá.

Mais batidas à porta.

Foi quando Emília percebeu que o narigudo sumira lentamente, e agora reaparecia, recostado contra o espaldar da cadeira em que estava sentado. Mas, ao contrário dos seus dois companheiros, ele parecia apenas alternar a consistência de seu corpo, como uma assombração.

– Aqueles idiotas nem sabem o que tão perdendo. – Resmungou para si o homem sorridente enquanto sumia e reaparecia lentamente.

Emília já ia pulando pela janela, quando a porta abriu de supetão e por ela entraram Peri e Policarpo logo atrás.

– Onde estão os outros dois? – Perguntou Policarpo.

– Não sei. Apenas sumiram, e levaram consigo dois grandes sacos, cheios de pó, imagino. – Respondeu a boneca.

– Mas deixaram um para trás! Veja! – Apontou Peri.

– Este deve pertencer àquele ali. – Emília apontou para o homem que ainda se encontrava esparramado sobre a cadeira, com um sorriso estampado sobre o rosto, e os olhos fechados.

– Deus do céu! É um fantasma? – Disse Policarpo sobressaltado.

– Não seja bobo! – Respondeu a boneca. – Ele ficou assim quando cheirou uma grande quantidade de pó agora pouco.

– E ele não foi para lugar algum? – Estranhou Peri.

– Pelo visto não sabe pra que serve o pó e, por outro lado, cheirou demais. – Respondeu a boneca.

– Imagino que esse seja um efeito colateral. – Disse Policarpo.

– Como vou saber? Nunca experimentei fazer isto. – Disse a boneca já gesticulando os bracinhos para os lados.

– Vejam! Aí vem ele de novo! Ele parece bem contente. – Peri sorriu ligeiramente vendo a boneca sem ação e o homem sorrindo com os olhos fechados completamente alheio ao seu redor.

Então o sujeito se materializou por completo diante dos três e, aos poucos, abriu os olhos, como que acordando de uma excelente noite de sono.

***

Mas logo esticou a espinha num sobressalto ao ver diante de si, um velho e um índio.

Por um instante ele tentou balbuciar algo, mas antes de emitir algum som uma vozinha vinda do chão indagou. – Ei! Está me escutando?

O homem narigudo virou o rosto para baixo, e quando vislumbrou, quase aos seus pés, a boneca com uma mão ao lado da boca e outra na cintura olhando para ele com seus olhos de botão, olhou de esgueira para o espelhinho sobre a mesa ainda com os restos das carreiras de pó.

– Acho que ele está mal, só sabe ficar olhando com essa cara de bocó. – Disse Emília olhando para Policarpo e Peri enquanto apontava para o homem sentado.

– Quem são, vocês?! – Exclamou o homem arregalando os olhos como quem acaba de perceber que esqueceu as chaves dentro do carro após bater a porta.

– Ah! Finalmente! Estes são Pó de…

– Oh! Meu Deus! Ela fala mesmo! – A voz do sujeito já saía meio esganiçada e alta. – Vocês são da agência?

O homem se ergueu da cadeira e afastou-se da boneca.

– Agência? – Indagou Policarpo olhando para seus dois companheiros.

– Você não está dizendo coisa com coisa e por que estranha tanto o fato de eu estar falando? Nunca viu? – Confrontou a bonequinha virando-se para acompanhar o homem.

– Não são da Intempol, isto não é um robô? – Sussurrou o homem quase que para si mesmo e recuperando a calma.

– O senhor poderia, por favor, nos explicar do que está falando? – Perguntou Policarpo erguendo as mãos com as palmas abertas para o homem buscando acalmá-lo.

– Nossa essa parada é mesmo forte. Melhor maneirar, essas alucinações já tão reais demais. – Continuou o homem desviando o olhar do trio e pegando o saco de pó que estava encostado ao lado da cama.

– Ele parece estar nos ignorando. – Disse Policarpo. – Ora, é justamente sobre isto que viemos lhe falar… – Disse Policarpo ao ver o homem pegar o saco.

– Algo não está me cheirando bem aqui. – Disse a boneca.

O homem limpou os restos do pó que ainda faziam seu narigão brilhar e em seguida tirou de dentro do paletó uma caixinha idêntica às que os seus companheiros tinham.

_ A caixa! Peguem-na! – Gritou Emília de repente. – Não deixem que ele suma!

A ação de Peri foi quase que imediata. Fazendo de sua lança um bastão, ele acertou a caixa isolando-a para um canto, enquanto jogou-se sobre o sujeito caindo os dois no chão.

Emília correu para apanhar a caixa, que agora ela podia ver melhor. Parecia rasa e tinha uns botões em uma das faces.

– Peguei! – Gritou ela erguendo a caixa sobre a cabeça enquanto o sujeito tentava se desvencilhar de Peri.

O homem empurrou Peri e rapidamente sacou uma enorme pistola do coldre oculto debaixo do terno e disparou contra a boneca que foi jogada para trás com o impacto e caiu de costas contra a parede, largando a caixa.

– Não! – Gritou Policarpo, jogando-se contra o braço armado do sujeito.

Policarpo tentou segurar o homem, ambos ajoelhados ao lado da cama. Mas Policarpo nunca exercitara seu corpo como sua mente, então aos poucos, seu adversário conseguiu voltar a arma contra Policarpo.

Foi então que um vaso quebrou-se contra a cabeça do homem, que caiu desacordado.

Policarpo olhou para cima e deparou-se com Peri, lábios cerrados e testa franzida olhando fixamente para o homem desmaiado.

Os dois o revistaram retirando seus pertences e o amarraram com as mangas do próprio paletó.

Em meio a isto, começaram a escutar uns resmunguinhos e se voltaram para ver Emília baleada sentada no canto do quarto com um buraco no meio peito e muita macela espalhada para todos os lados.

Peri correu para perto da boneca e a tomou gentilmente em ambas as mãos espalmadas para cima, com cuidado para não rasgá-la mais e também não deixar mais da macela cair de dentro dela.

– Está bem? – Perguntou o índio.

– Quê que você acha? – Esbravejou a boneca ainda inerte de barriga para cima com um enorme buraco em sua barriguinha, a testa franzida e a boca retorcida e os dentes trincados. Ela cerrou os punhos e ainda proferiu outras exclamações do mais chulo linguajar enquanto socava as palmas das mãos de Peri.

– Ela deve ser mesmo um espírito que veio para nos guiar. Só assim para continuar com tanto vigor ainda que semidestruída desse jeito. – Exclamou Peri com os olhos marejados, segurando a bonequinha que se contorcia como se fosse sagrada.

– Espírito é a vó! Índio maluco! – Ela gesticulava com seus bracinhos e batia suas perninhas nos braços de Peri espalhando mais macela pelo quarto.

– O que podemos fazer para ajudá-la? – Perguntou Policarpo tentando acalmar a boneca.

– Vocês sabem costurar? Eu preciso ser costurada! Precisam me reencher de macela, pois boa parte da que estava dentro de mim se espalhou! E parem de me olhar como se eu fosse morrer! Eu sou uma boneca, oras!

***

Quando despertou, ainda com resquícios de pó nas narinas avantajadas, o homem se viu deitado sobre a cama do quarto, cercado pelo trio. Peri e Policarpo, cada um de um lado da cama, e Emília, sentada ao pé da cama.

Policarpo segurava a arma do homem, analisando-a. E foi ele quem começou a falar no seu tom burocrático:

– Já está acordado? Muito bem. Queremos apenas algumas informações. Que diabos é Intempol e o que você e seus amigos queriam fazer com todo esse pó de pirlimpimpim?

– Eu não posso dizer. É confidencial. E acho melhor vocês me soltarem logo, antes que… – Respondeu o homem alternando o olhar entre as três figuras ao seu redor e testando suas amarras sem conseguir se remexer muito.

– Antes que o quê? – Indagou Emília.

– Ela está viva!?

– É, vivinha da Silva. – Exclamou a boneca – E acho melhor ir nos dizendo logo tudo que queremos saber, porque o meu amigo aqui já foi um oficial e sabe muito bem usar uma arma. E o outro você já sabe do que é capaz.

Peri permaneceu imóvel olhando para o homem com seu semblante indecifrável e sua lança em riste com o cabo apoiado no chão.

– Hahaha! Bem que me disseram que neste departamento eu veria de tudo! – Exclamou o homem de forma inesperada e com um sorriso azedo nos lábios.

Vocês acham mesmo que me assustam? Se me matarem, diversos agentes surgirão para prendê-los, e se necessário darão um jeito de matar mesmo você sua escrotinha de pano.

– O que ele disse?! – Perguntou a bonequinha para Policarpo como se fosse uma garotinha de cinco anos. – Do que ele me chamou?

– Não interessa, porque se ele fizer mais uma indelicadeza eu puxo o gatilho! – Exclamou Policarpo, batendo com o cano da pistola na cabeça do homem. – O senhor estava desmaiado, e tomei a liberdade de buscar por alguma identificação, mas não encontrei nada além desta plaqueta tão estranha quanto este artefato que se assemelha a uma cigarreira preta com números em cima. – Policarpo segurava na outra mão o estranho artefato e um cartão ambos feitos de um material que lhe era estranho.

– Ma…

– Shhh,.! – Policarpo apertou mais ainda a pistola contra a cabeça do agente. – Nós perguntamos e você responde. Peri?

O índio encostou a ponta de sua lança na barriga do sujeito que paralisou na cama prendendo a respiração e com o corpo retorcido tentando inutilmente afastar a cabeça para um lado e a barriga para o outro.

– Pelo que ela nos contou, você e seus amigos estavam agindo de forma bem suspeita, o que me leva a crer que assim como nós o senhor não quer que outros apareçam.

Diga-nos então, para quem vocês trabalham, e que diabos é Intempol.

– Ai, ai… tô tô ferrado.

– E? – Peri catucou o já aflito agente com a lança.

– Não sei muito sobre o que a Intempol faz exatamente, mas temos como nos deslocar no tempo usando estas caixas cronais.

– Você se refere a este artefato? – Perguntou Policarpo erguendo o que a pouco chamara de cigarreira.

– É.

– E que espécie de magia existe nesses artefatos? – Insistiu Policarpo.

– Magia alguma! Esta é uma máquina do tempo.

– Tão pequena? – Disse Policarpo investigando melhor o aparelho.

– Mas e o Pó de pirlimpimpim? – Intrometeu-se a boneca.

– Não faço ideia do que a agência quer com o pó de pirlimpimpim, só sei que recebemos essas missões de viajar para lugares absurdos como este, e procurar pelo pó.

Recentemente eu e meus companheiros descobrimos que esse pó dá o maior barato.

– Maior barato? – Interrompeu Policarpo.

– Cheirar as carreirinhas te deixa num estado de leveza e relaxamento mental absurdo, por alguns momentos é como estar em todos os lugares e lugar nenhum.

– Mas acabamos ficando viciados. Desde então, temos desviado parte das apreensões para uso pessoal. – E então o olhar do agente relaxou com uma boa ideia que lhe cruzou a mente. – Ei! Se vocês quiserem, nós podemos entrar num acordo. Se é pó que vocês querem, eu posso conseguir muito mais!

O trio não esboçou reação diante da proposta inusitada.

– E então? Quê que cês acham? – Insistiu o agente.

– Quer dizer que faz uso do pó como alguns usam ópio? – Perguntou Policarpo relaxando a pressão da arma sobre a cabeça do homem. Foi isso que quis dizer?

O homem olhou para Policarpo como se ele fosse um idiota, e respondeu:

– É… Mas e quanto ao acordo? Cês num são da corregedoria não, né? – No seu pouco tempo de serviço, o agente já escutara algumas histórias sobre o pessoal da corregedoria.

– Corregedoria? Não, não somos. – Respondeu Policarpo relaxando a pressão ainda mais e tentando absorver tantos termos novos. – Vejamos…

– Vamos direto ao assunto então. – Prosseguiu a boneca. – Eu estou em busca de uns amigos meus que foram capturados, e estes senhores estão me ajudando. Talvez você soubesse de algo a respeito. Não teria essa Intempol algo a ver com isto, teria?

– Como saber? O D.R.F…

– D.R.F.? – Indagou Policarpo.

– O meu Departamento, o de Realidades Fantásticas.

– Nome estranho. Mas, prossiga.

– Então,… De vez em quando, o Departamento faz alguns prisioneiros. Pelos mais variados motivos. É difícil saber.

– Acho que é isso. Creio que, já podemos ir. – Concluiu Emília. – Ah sim! Já ia esquecendo de que não nos havia dito seu nome.

– Augusto, Agente Augusto.

O trio começou a se movimentar para sair.

– Ei! Esperem! – Gritou Augusto. – Cês vão me deixar aqui, amarrado? Quem são vocês, afinal?

– Nós vamos deixá-lo amarrado aí. – Disse Peri. – Mas não se preocupe, pois avisamos ao dono da estalagem e ele vai cuidar bem de você, até que os seus amigos voltem para buscá-lo.

– Ah sim! Também estou levando este seu artefato e esta arma só por via das dúvidas. – Completou Policarpo. – Eu gostaria de poder ficar mais para que o senhor me ensinasse como mexer direito em ambos, mas pelo visto a arma não deve ser mesmo muito diferente de um revólver, pela cara que fez quando a tinha em sua cabeça.

– Mas e o nosso acordo?

– Lamento – Disse Emília dando de ombros enquanto sumia pela porta atrás dos seus companheiros.

– Porra! – Gritou Augusto, enquanto os três se retiravam do quarto.

– Que boca mais suja! A gente devia ter lavado ela antes de sair! – Exclamou a boneca já no corredor.

***

Sem demora, retornaram ao palácio real, tal como o Rei pedira.

Peri carregou facilmente o saco ainda cheio de pó.

– Eu fiquei assustada. Por um instante achei que você fosse matar o homem. – Disse Emília para Policarpo.

– Ele tem sorte de eu não ser um sujeito violento. Mas se tem uma coisa que não tolero é alguém que tenta levar os outros na conversa.

Uma vez diante do Rei, eles narraram o ocorrido na hospedaria.

Em seguida, a boneca ganhava novo recheio de macela e era remendada por uma costureira real, que aproveitou para lhe costurar um novo vestidinho.

Policarpo também recebeu novas roupas do alfaiate real.

Peri recusou a oferta de roupas novas, mas aceitou de bom grado um conjunto de arco e flechas.

O Rei também tinha algumas novidades para contar. Ele também já escutara sobre a tal Intempol, que vinha metendo o bedelho em vários lugares, algumas vezes causando tumulto.

– Estou muito preocupado com o que isto pode acarretar e tenho quase certeza de que eles têm a ver com o desaparecimento de seus amigos. – Disse o Rei, e continuou: – Agora sua missão de resgate torna-se uma missão real a serviço do reino de Pasárgada. Devem aproveitar essa oportunidade para descobrir quais as intenções dessa agência que muito me preocupa.

– Ficamos honrados, Vossa Alteza, sendo este um reino tão próspero e com um governante interessado em seu povo. Diferente dos existentes em meu próprio país. – Respondeu Policarpo.

– Fico lisonjeado, mas todos, em qualquer lugar, podem se considerar co-cidadãos de Pasárgada. Para finalizar, gostaria de lhes oferecer mais uma ajuda, uma pequena dica. Como lhes havia dito, não tenho exército algum e nem creio que este se faça útil no caso, mas vão até o sul do Brasil. Uma vez lá, busquem por um certo Capitão Rodrigo. Ele poderá ajudá-los. Levem também esta carta de recomendação.

A situação era complicada para Rodrigo Cambará. Esse peste era mais ardiloso do que ele pensara.

Seu adversário podia parecer um frouxo, mas sabia lutar muito bem quando encurralado.

Já fazia um minuto que trocavam socos, e agora rolavam na relva, tentando se estrangular. Era uma briga equilibrada, sem dúvida, como há muito ele não travava.

Porém, seu adversário acabara de puxar de uma faca e nos olhos via-se a gana de terminar logo com o capitão. Rodrigo já estava esbaforido e após esquivar de duas apunhaladas a terceira rasgara sua camisa e a quarta tiraria sangue, ou pior.

Então, surgiu uma flecha, vinda não se sabe de onde, cravou-se no braço de seu adversário, justamente o que empunhava a faca.

Rodrigo não tardou, e de súbito tratou de inverter as posições e imobilizou o adversário ferido saltando sobre ele e usando seu peso, já que as forças faltavam, para mantê-lo no chão.

***

– Bela flechada, Peri! – Exclamou Emília.

O trio corria na direção dos dois homens que brigavam há pouco. Peri, agora com a lança em punho, e Policarpo, que segurava o estranho revólver, ou melhor a Ter Mauser segundo as inscrições na lateral do cano, que roubara do agente Augusto.

– Quem são vocês? – Perguntou o homem, que agora segurava seu adversário flechado, com a faca no pescoço do mesmo.

– Estamos à procura de um tal de Rodrigo Cambará. – Adiantou-se Emília – É o senhor?

– Estarei a ter devaneios?! – Arregalou-se Rodrigo.

Antes que Emília abrisse a boca tentando contar tudo da sua forma atabalhoada confundindo mais do explicando, Policarpo catou a boneca e a enfiou no bolso de seu paletó.

– Não se assuste com ela. – Disse Policarpo, baixando a pistola. – Talvez possa nos ajudar. Estamos em busca de um homem chamado Rodrigo Cambará.

– Pois me chamo Rodrigo Cambará, não estão do lado deste pobre infeliz pelo que posso ver, mas o que me garante que não estão, da mesma forma, à minha caça?

– Sinto dizer que, não há muito que possamos fazer para aliviá-lo dessa dúvida, mas viemos até aqui para buscar o seu auxílio.

– Sendo assim, comecem por me ajudar com este traste ensanguentado que tenho em meus braços, tchê!

Peri e Policarpo ajudaram a amarrar o sujeito com quem Rodrigo havia lutado há pouco.

– Agora, sem mais tardar, terminemos as apresentações. – Disse Rodrigo, encarando Policarpo. – Como é a sua graça?

– Eu me chamo Policarpo Quaresma, este aqui é Peri e estamos auxiliando esta bonequinha a resgatar seus amigos que…

– És um tanto crescido para andar com bonecas no bolso. – Disse em chiste Rodrigo. Voltou-se então para Peri, repousando-lhe a mão sobre um dos ombros. – Tenho de agradecer-lhe, pois tens boa mira para um selvagem. Me salvaste de uma boa.

– Vou tomar isto como um elogio. – Respondeu Peri.

– Pois que assim seja! – Exclamou Rodrigo, sorrindo.

A boneca não parava de se debater dentro do bolso de Policarpo.

– Vocês querem minha ajuda, mas, como veem, tenho já muitos problemas. Este foi o primeiro que capturei de alguns intrusos que vêm importunando as vizinhanças.

Policarpo notou que ali perto estavam jogados os restos de uma caixa preta como a que retirara de Augusto.

– Creio que é justamente por isto que aceitará nos ajudar. Pude perceber que este homem possuía um artefato como este, que agora está em pedaços. – Disse Policarpo, erguendo a caixa do agente Augusto. – Isto significa que se trata de um dos homens que também estamos perseguindo.

– Mas que conveniência! E de onde vosmecê vem? Noto que não são daqui, pelo sotaque.

– Viemos de vários lugares! – Exclamou Emília, saltando do bolso de Policarpo.

– Poucas coisas me assustam, mas lhes digo que essa vossa boneca me dá arrepios.

– Não há razão. Garanto que tem boa índole e é por ela que estamos aqui. – Explicou Policarpo. – Os amigos dela foram capturados, provavelmente por homens como esse que acabamos de aprisionar.

– Barbaridade! – Exclamou Rodrigo. – Esta história está ficando cada vez mais confusa.

– Deixa que eu conto tudo! – Antecipou-se Emília.

– Não acho que este seja o melhor local para conversarmos mais sobre o assunto. Muito menos na presença desse… homem da Intempol. – Disse Policarpo. – Rodrigo Cambará, aqui está uma carta de recomendação, lavrada pelo Rei de Pasárgada em pessoa.

Rodrigo leu a carta erguendo aos poucos uma das sobrancelhas e fazendo um bico com o lábio inferior.

– E vocês trabalham para esse Rei? – Perguntou o capitão.

– Não. – Respondeu Policarpo. – Ele apenas nos ajudou como pôde.

– Porque não sou ovelha desse nosso governo e não serei de outro.

– Se vier conosco, posso lhe assegurar que tudo lhe será explicado.

– E como chegamos ao tal reino?

E todos se voltaram para a bonequinha.

Convencer Rodrigo Cambará de que cheirando o pó de pirlimpimpim poderiam viajar até Pasárgada não foi tarefa fácil, mas apesar de toda a desconfiança, todos os quatro chegaram ao próspero reino, para assombro do bravo e eterno rebelde.

– Fantástico! – Exclamava o Rodrigo com os olhos arregalados.

***

De volta ao palácio real, foram acomodados em aposentos e informados de que o agente Augusto havia desaparecido.

Neste meio tempo, a boneca contou ao gaúcho tudo que lhe ocorrera desde o incidente no sítio.

O rei ofereceu a eles um farto jantar, onde Policarpo mostrou a pistola que pegara do agente, e decidiu deixá-la com Rodrigo. – Creio que o senhor fará melhor uso dela.

– É uma arma bem estranha. – Comentou o gaúcho. – Tem certeza de que funciona?

– Vi com meus próprios olhos. – Respondeu Policarpo. – Se ainda tiver dúvidas, pergunte a ela sobre o rombo que o tiro abriu em sua barriga.

– Acredito em vosmecê. Aliás, depois de hoje, passarei a crer em muito mais do que imaginava possível. – Disse Rodrigo sorrindo.

– E você, que dizes sobre isto? – Virou-se Rodrigo para Peri. O índio bebia o vinho como se fosse água e já estava com os olhos pequenos, o rosto corado e um sorriso singelo nos lábios.

– Não me importa. HIC! Para mim existe apenas minha Ceci. – Disse Peri numa fala meio arrastada.

– É casado?

– Nós nos amamos… e isto já basta… – Peri respondeu ao mesmo tempo em que sua cabeça tombava sobre o prato.

– Ha ha ha! – Gargalhou Rodrigo. – Pode-se ver que nosso amigo não leva jeito para beber!

– Mas então por que bebeu tanto? – Admirou-se a boneca.

– Na certa nunca experimentou álcool, não podia prever os efeitos. – Deduziu Policarpo.

– Índio tolo! – Disse Rodrigo. – Mas me pareceu um sujeito honrado.

– Rodrigo! Senhor! – Disparou a boneca. – Conte-nos alguma história sua. Já participou de batalhas?

Rodrigo Cambará sorriu e respondeu. – Calma guria. Participei de muitos combates lá pelos pampas, principalmente contra tropas do governo.

Ao escutar isto Policarpo sobressaltou-se, mas se conteve. Apesar de tudo ainda tinha dentro de si um espírito nacionalista exacerbado. Rodrigo ignorou o sobressalto e prosseguiu narrando um de seus combates contra tropas governistas.

***

– E assim foi. Acabamos tendo de fugir. Ao menos deixei minha marca. – Concluiu o capitão.

– Nooossa! – Exclamou a bonequinha batendo palminhas.

– E tu? Qual tua história, amigo Pó de caco? – Perguntou o Capitão no seu tom brincalhão.

– É Policarpo. – Respondeu sem jeito. – Emília é quem tem esta insistência em me chamar dessa forma. Posso apenas dizer que tive uma vida mais pacífica que a sua, apesar de ter participado da revolta da armada no Rio de Janeiro, do lado do governo.

– Hay gosto pra tudo. – Disse Rodrigo. – Mas se me permite, a mim parece curioso que ainda estejas vivo!

– Sem dúvida. – Respondeu Policarpo. – Mas, por mais absurdo que pareça, ao que tudo indica, este pó quando inalado nos permite viajar não só no espaço como no tempo.

– Já vi absurdos. Mas como este nunca. Mas quem sou para tirar conclusões? E agora, que fazes?

– No momento, apenas ajudo ela, e repenso meus ideais.

– Espero que se convença de que este governo de nada vale, já lhe adianto que em minha época as coisas pouco mudaram. Mas, mudando de assunto. – Disse Rodrigo aproximando-se de Policarpo e sussurrando. – Já fostes conferir essa fama local? Sobre deitar-se com qualquer mulher?

– Infelizmente, não houve tempo para isso. E, também já não tenho mais idade para correr atrás de mulheres, nunca fui do tipo mulherengo.

– Pois eu sempre fiz questão de conferir as moças da terra! Mas tens razão. Já sabemos quem são os culpados por toda a confusão que tem se dado. Vamos até o covil desses diabos e armar o fandango por lá, encontrar os amigos da boneca e regressar para este paraíso! – Exclamou Rodrigo com um prazer e pontuando a declaração com um tapa na mesa que fez Policarpo dar outro sobressalto.

Aproximando-se ainda mais de Policarpo, Rodrigo sussurrou-lhe ao pé do ouvido, sem que Emília escutasse. – E quanto a esta criaturinha de pano?

– Ainda não tenho opinião formada. Mas, ora bolas, estamos em Pasárgada! Uma boneca falante começa a não ser tão absurdo.

– Ei! Parem de mexericos! Não precisamos de um plano? – Perguntou Emília.

– Sim – Disse Rodrigo. – Pensamos em um, e pela manhã o poremos em prática, quando estivermos descansados.

– Peri sem dúvida vai precisar se recuperar. – Completou Policarpo, virando a cabeça do valente guerreiro, para verificar que este dormia como uma pedra.

Na manhã seguinte Peri sentia como se sua boca fosse a bunda de um macaco velho e sua cabeça pesava como uma jaca, mas com esforço acompanhou os demais, mantendo os dedos nos ouvidos, já que cada som maior que o de um alfinete varava sua mente como uma flechada. Só que a boneca não parava de falar.

O plano, no fim das contas, resultava em uma manobra bem simples e, até certo ponto, ingênua.

– Mas são táticas descomplicadas que costumam funcionar em momentos como este. – Ressaltou Policarpo. – Não é mesmo, senhor Rodrigo?

– Assim espero. – Respondeu Rodrigo secamente.

Todos a postos, cheiraram o pó e logo, surgiram dentro de um pequeno aposento.

– Agente Augusto! Como vai? – Saudou Emília.

O agente Augusto estava distraído aliviando sua bexiga no mictório de um dos banheiros, no andar em que trabalhava na sede da Intempol.

Sem titubear, Rodrigo Cambará tratou de puxar a arma e encostá-la nas costelas do agente, que paralisou como estava com um calafrio que percorreu sua espinha e fez sua micção cessar.

– Larga os bagos e levanta os braços. – Ordenou Rodrigo.

Assim fez o agente prontamente.

– Mas antes, recolha suas coisas, estrupício!

– Sim, claro. – Respondeu o agente quase degolando o dito cujo no zíper da braguilha.

Policarpo e Peri se encarregaram de revistar Augusto e retirar tudo que ele trazia em seus bolsos.

– Ele está limpo. Sem armas ou mesmo algum artefato como o que tinha.

– Muito bem, nos leve ao lugar onde ficam os prisioneiros!

Foi então que o alarme tocou.

– Idiotas! – Exclamou Augusto com um sorriso perverso nos lábios. – Achavam mesmo que conseguiriam sair daqui? É óbvio que, não contavam com as câmeras!

– Pois agora é que veremos! – Gritou Rodrigo Cambará.

O grupo correu para fora do banheiro tendo em sua dianteira o agente Augusto, escorraçado por Rodrigo Cambará. De saída, derrubaram dois agentes que os esperavam do lado de fora do banheiro.

Policarpo percebeu que Emília não os acompanharia e acomodou-a dentro do bolso.

Peri corria na retaguarda de arco e flecha em punho.

Rodrigo puxara seu revólver além da Ter Mauser que empunhava na outra mão. Ele conduzia a pontapés, o agente Augusto adiante, a todo o momento perguntando onde estavam os prisioneiros.

***

Mais dois agentes surgiram. Um caiu com uma flecha de Peri e o outro com a Ter Mauser de Rodrigo Cambará.

– Mas que arma dos infernos! – Exclamava Rodrigo, sorrindo com o estrago que viu o projétil fazer no peito do agente.

Já bastante atordoado e ferido, o agente Augusto apontou uma porta logo depois de uma curva virando o corredor.

– Aqui! Aqui! Temos um preso aqui!

Mais uma vez Augusto foi adiante com um pontapé, usando Augusto como aríete, para abrir a porta da sala.

Todos entraram correndo, pois diversos agentes já estavam no encalço do quarteto e vinham bem armados.

Peri e Policarpo trataram de tatear dentro do aposento escuro algo para bloquear a porta. A boneca saltou do bolso de Policarpo, enquanto o agente Augusto acendia a luz sob os berros de Rodrigo.

– Pobrezinho! – Exclamou Emília quando a luz foi acesa.

Todos se voltaram para a triste figura de um papagaio, quase todo depenado e à beira da morte, dependurado por uma das patas num poleiro de madeira bem no centro do aposento.

– Um papagaio?! – Esbravejou Rodrigo, na direção do agente. – Eu lhe peço prisioneiros e tu me trazes para esta ave infeliz?

– Não há tempo. Rápido, temos que sair daqui! – Gritou Policarpo.

De imediato os quatro puxaram seus bocados já previamente separadas, e aspiraram o pó.

Foi quando o papagaio sentiu o índio Peri segurar uma se suas asas, desejou ser levado dali de uma vez, e foi isso que aconteceu.

***

FIUUM!!!!!!!

***

Todos exalaram e sorriram uns para os outros quando se viram de novo vagando em meio ao vazio, mas Rodrigo Cambará não parou de lastimar-se um segundo sequer.

– Uma perda de tempo descabida!!

O grupo surgiu nos aposentos de Policarpo, no palácio real de Pasárgada.

– Escapamos por pouco. – Disse Policarpo enxugando o suor da testa com seu lenço mal contendo a tremedeira da mão.

– Pobre papagaio! Está quase morrendo. – Emília lastimou sacodindo as mãozinhas e mordendo os lábios enquanto a ave era levada até uma cama.

– Por que esses homens fariam isso com uma pobre ave? – Indagava Peri, aproximando gentilmente o ouvido ao bico da ave que murmurava de forma quase inaudível.

– Esperem! – Disse o gaúcho com um sobressalto. – Que barulho é esse?

Rodrigo abriu a porta e, mal colocou a cabeça para fora, fechou-a de supetão.

– Eles estão aqui! – Exclamou o gaúcho com os olhos arregalados.

– Eles quem? Não vai dizer que… – Assustou-se Policarpo.

– Exato! E não creio que poderemos fugir deles desta vez. São muitos! Já deveria ter imaginado que este refúgio era previsível.

– Oh meu Deus! – Exclamou Emília. – Que faremos agora?

– Rápido, não há tempo! – Gritou Peri – Peguem cada um, um punhado e me sigam!

– Para onde?! – Gritou Policarpo.

– O papagaio acabou de nos revelar o que escondeu da Intempol. – Explicou Peri sorrindo.

O estardalhaço dos agentes se aproximando ecoava pelos corredores do palácio.

O grupo não perdeu tempo.

FIUUUUMMM

O lugar era…

– Um matagal à beira de um rio! – Reclamava Rodrigo. – Eu poderia ter pensado em lugar melhor para estar!

– Calado! O pobrezinho está querendo dizer algo! – Ralhou Emília.

– Curr-pac, papac! Curr-pac, papac!…

– Um medalhão dentro do rio? – Indagou Peri.

– Não me diga que compreende o que esse bicho está a dizer? – Revoltava-se Rodrigo Cambará.

A ave continuou a falar com Peri, enquanto o capitão dava as costas e se afastava possesso.

– Ora, faça como eu Rodrigo. – Consolava Policarpo. – Depois de ver uma boneca falar e andar como gente, não duvido mais de nada.

Peri levantou-se. O papagaio se calara.

– Morreu? – Perguntou Policarpo.

– Não, apenas está muito fraco.

– E então, o que ele disse? – Perguntou Emília com os olhos marejados e as mãozinhas entrelaçadas contra o peito.

– Temos de encontrar o Muiraquitã no fundo do rio, é nossa única esperança.

– Quê quié isso? – Indagou a boneca já colocando as mãos na cintura.

– Não sei, mas vou procurar. – Disse o índio pulando n’água.

***

Peri começa a buscar o fundo do rio vindo à superfície apenas para respirar

– Que vergonha! Os senhores, dois marmanjos, deixando o pobre do Peri, buscar sozinho esse Mu sei lá o quê. Pó de caco, coitado, já tá velhinho, mas você, Rodrigo, bem que podia ajudar.

– E quem és tu para vir me pedindo tal coisa?

– Uma boneca. E por esse mesmo motivo não posso me molhar, caso contrário meu recheio de macela incharia e eu ficaria horrorosa.

***

E a bonequinha desandou a matraquear sobre o assunto…

– Ai, que já me dá nos nervos! – Estourou o gaúcho. – Vou mesmo mergulhar de uma vez e tapar os ouvidos n’água.

***

Agora eram os dois mergulhando e emergindo sem nada encontrar.

Após olhar à volta olhando a esmo para o horizonte, Policarpo suspirou e sentou-se na beira do rio, tirou os sapatos, arregaçou as calças, e começou a caminhar onde o rio era raso, tentando coordenar os dois companheiros em suas buscas.

– Mais para aquele lado, Peri! – Gritava Policarpo. – Rodrigo, tem certeza que já não procurou por aí?

Foi quando, já com a água até o meio das canelas, Policarpo não se deu conta de uma pedra no leito do rio tropeçou e caiu.

Emília foi a primeira a rir, pois assistia a tudo, de uma distância segura, sentada num tronco caído, ao lado do papagaio que continuava desfalecido.

As risadas aumentaram quando Policarpo levantou-se encharcado e cheio de lama, com algo preso ao beiço, uma espécie de argola grossa que repuxava seu lábio inferior para baixo.

– Eí! Isso é meu! – Intercedeu uma voz vinda de dentro do mato logo atrás da boneca.

As risadas pararam e todos se voltaram para a figura escura e perneta de pé atrás de Emília.

– Sací?! – Exclamou Emília.

– Que Saci que nada. Esse aí é o tal do Macunaíma. – Exclamou o papagaio que acordara de supetão com os olhos arregalados.

Os três homens que estavam no rio trataram de sair rápido de dentro d’água para conferir o recém chegado que suspirando sentou-se no tronco ao lado do papagaio.

– Macunaíma, o herói? – Perguntou Peri se aproximando.

– O lendário Macunaíma? – Completou Policarpo.

– Quem há de ser esse Macunaíma, tchê?

– Ai! que preguiça!… – Exclamou Macunaíma.

– Nossa! Que fedor! – Exclamou Emília enojada. – Ele tá escuro de tão encardido e sujo!

– Igualzinho da última vez que nos vimos. – Disse o papagaio.

Macunaíma levantou-se e saltou em sua única perna até o rio onde mergulhou e se banhou.

***

Alguns minutos depois, a figura que agora saía de dentro do rio era bem diferente da que entrara. Excetuando o fato de ser perneta, é claro.

Agora, podia-se ver o tom loiro dos cabelos, a pele branca e os traços finos. Um homem de belas feições estava escondido por debaixo da sujeira que agora manchava as águas do rio.

– Satisfeitos? – Perguntou o herói. – Precisava mesmo de um banho. Me dê, agora, o meu Muiraquitã.

Peri pegou o Muiraquitã das mãos de Policarpo e entregou para Macunaíma.

– Quantas saudades… – Sussurrou Macunaíma afagando carinhosamente sua joia tão estimada e prendendo-a no beiço. Foi então que abraçou Peri e começou a soluçar e chorar copiosamente.

– O que foi que deu nele? – Perguntou Rodrigo.

Todos se entreolharam sem saber o que dizer, inclusive Peri que já lacrimejava em solidariedade.

– É uma longa história. – Disse o papagaio que agora falava o português com certa desenvoltura. – O Muiraquitã é a única lembrança que ele tem de sua amada Cí, a Mãe do Mato, que há muito subiu para o céu. Tempos atrás, o herói perdeu tanto a perna quanto o Muiraquitã dentro deste rio, levados pelas piranhas. Depois de algum tempo, ele desistiu de procurar e também subiu pro céu.

– Piranhas!? – Exclamou Rodrigo.

– Pelo visto este rio já não mais as tem. – Respondeu o papagaio.

– Afinal de contas, o que tudo isso tem a ver? – Perguntou Policarpo.

Macunaíma então cessou a choradeira, enxugou as lágrimas e continuou a explicar.

– Depois de muito bazá, solitário pelo céu afora, resolvi voltar. Primeira coisa, fui rever meus antigos domínios do Mato Virgem, onde já imperei. Chegando lá, vi que boa parte já num era virgem não, de tão revirada e cavocada que estava, repleta de estranhos. Caminhei então pras bandas de São Paulo pensando em arrumar uma daquelas cunhãs polacas. Antes disso, me detive num sítio, onde virei marimbondo e fartei-me das jabuticabas de um dos muitos pés que lá estavam. Foi lá que encontrei com esta boneca que, do pé de uma das jabuticabeiras, observava uma garotinha comendo as frutinhas.

– Oh! Meu Deus! – Exclamou a boneca. – Foi justo quando a Narizinho comia jabuticabas que os homens armados invadiram o sítio!

– Comparsas dos que reviravam o Mato Virgem, logo percebi. – Disse Macunaíma.

– E o senhor não fez nada? – Indignou-se a boneca.

– Como não? – Virou-se o herói para Emília com um ligeiro sorriso nos lábios. – Pousei no seu ombro quando já estava sozinha e a mandei buscar a ajuda de Policarpo.

– Mas justo a mim? Por quê? Já me conhecia? – Perguntou Policarpo.

– Ora, não me pergunte essas coisas. Mas, no momento, me perguntava quem poderia encontrar o Muiraquitã, e aí está, foi você quem o encontrou!

– E por que não foi junto? – Perguntou Emília.

– Ai! Que preguiça!… – Exclamou o herói – Achei melhor dormir no sítio mesmo, enquanto esperava seu retorno. Mas, jacaré voltou? Nem você. E fui-me embora que tinha mais o que fazer.

– É isso, vou-me embora! – Esbravejou Rodrigo. – São todos uns loucos!

– Não! Não se vá! Precisamos do senhor para resolver esse caso. – Suplicou Emília. – Estamos todos à mercê dessa… Intempol. Se nos separarmos, seremos todos capturados, tal como foram meus amigos.

– Mas sequer sabemos por onde começar! – Insistiu Rodrigo. – Não vou arriscar mais uma vez minha pele em uma empreitada suicida.

– Mas agora teremos a ajuda de Macunaíma! – Disse Peri.

– Sim, Macunaíma, nos diga se sabe onde estão os amigos dela. – Disse Policarpo.

– Não faço ideia. – Respondeu o herói.

– Curupác! Mas eu sei! – Esgoelava-se o papagaio.

– Então diga logo! – Enervou-se Emília.

A ave limpou a garganta e contou:

– Pelo simples fato de ainda se lembrar de seus amigos, posso dizer que algo de muito estranho está ocorrendo. Eles foram mandados para um local de onde dificilmente se pode esperar fugir, pois uma vez condenado a essa prisão, todo e qualquer traço de sua existência, em todo e qualquer tempo, é apagado. Essa prisão é conhecida como “A prisão dos homens que nunca existiram”.

– E como salvá-los de tal lugar? – Indagou Peri.

– Deixe que o papagaio nos conte tudo. – Voltou-se Rodrigo Cambará de súbito. – Ao que parece, essa falha não existe por acidente. Não é? E por que não nos contou antes sobre isto e nos fez perder tempo nadando naquele rio até encontrar o enfeite!

– O gaúcho é um homem perspicaz. – Elogiou o papagaio. – E é justo por causa disso que vocês precisarão do herói.

– Minha ajuda? Por quê? – Indagou Macunaíma encolhendo os ombros e apertando os lábios. – Já tenho o que queria. Agora só me falta uma perna.

– E se eu lhe disser que Piaimã, é quem lidera o grupo de agentes que tem causado tanta perturbação a todos? – Disse o papagaio. – E que o que ele quer de fato é…

– Impossível!!! – Berrou Macunaíma. – Eu mesmo o vi morrer naquele fosso!

– Mas eu mesmo o vi. Ele esteve lá na sala enquanto me torturavam tentando me forçar a revelar alguma informação sobre você.

– Explique-se melhor. – Disse Policarpo.

– Não há o que explicar. Ele estava lá, e quer se vingar do herói.

– Mas então por que prendeu meus amigos? – Insistiu Emília.

– Isto já é outro caso. Pelo visto, obter o pó de pirlimpimpim é a real função de seu departamento da Intempol, mas não me pergunte pra que eles o querem.

Todos se calaram, menos Emília que queria porque queria que o papagaio lhe mostrasse onde ficava a tal prisão. Por mais que a ave negasse qualquer conhecimento a respeito. Até que o papagaio, cujas penas já haviam crescido neste meio tempo desde que Macunaíma ressurgira, deu um resmungo, suspirou e voou pra bem longe até sumir de vista.

***

– Lá se foi. – Disse a bonequinha olhando a ave sumir no céu.

– Não se entristeça ele nos disse tudo que sabia. – Disse Policarpo apanhando-a em seus braços. – É o papagaio mais bem informado que já vi.

– E mesmo assim não soube nos dizer tudo… – Lamentava Emília.

– Ei! Vocês conhecem aquela do papagaio? – Disparou Macunaíma.

Silêncio.

– Num momento destes e esse parvo me vem com gracejos! Se eu pudesse voar já teria feito o mesmo que o papagaio. – Disse Rodrigo. – Gosto de uma boa luta, mas temos que saber reconhecer quando a coisa está aquém de nossas capacidades.

– Mas… – Policarpo tentou dizer algo.

– Mas o quê? – Interrompeu Rodrigo Cambará. – É claro que esse tal Piaimã nos aguarda em alguma armadilha! E o que fizemos até agora foi apenas nos juntarmos para que ele nos capture a todos de uma só vez!

– E é por causa disso que devemos permanecer juntos! – Replicou Policarpo. – Até onde pude perceber, todos aqui já estavam vulneráveis à Intempol em seus locais de origem.

Macunaíma teve seu mato virgem destruído, a bonequinha quase foi capturada com seus amigos, eu imagino que eu seria assassinado em meu cárcere, o Capitão Rodrigo já enfrentava um dos agentes que tencionava capturá-lo,…

– Eu não. – Interrompeu Peri, e todos voltaram olhares interrogativos para o índio, que enrubescido completou. – Mas que importa? Depois de tudo pelo que passamos estou na mesma canoa.

Policarpo sacudiu a cabeça e prosseguiu.

– Nossa única chance é a de unidos nos mantermos fora do alcance desse, Piaimã. E detê-lo.

– Então, o que vosmecê sugere, velho? – Indagou Rodrigo.

– Bom, é certo que Piaimã nos têm cercados. Podemos seguir fugindo pelo mundo afora até que nosso pó de pirlimpimpim se acabe, mas ele vai acabar nos capturando mais cedo ou mais tarde. Vejam lá, não sou nenhum estrategista, mas creio que a melhor saída será surpreendê-lo saltando dentro da armadilha. Estou certo, Capitão?

– Humm… – O gaúcho parou coçando o queixo e olhando para o chão. – Hay chance. É ousado, mas uma tropa encurralada sempre pode surpreender, se ao invés de recuar sair em carga contra um ponto fraco do inimigo.

– É verdade. – Disse Peri. – Já o fizemos de certa forma, quando invadimos a Intempol antes, e apesar de quase termos sido todos capturados, fomos bem sucedidos. Mas o que pretendes com isso? Matar Piaimã apenas?

– Ai! Que preguiça…

– Esperem! Já sei! – Gritou Emília sorrindo. – Acabei de bolar um plano usando essa tática para surpreender o inimigo, e ao mesmo tempo encontrar e salvar meus amigos!

– Pois diga logo do que se trata! – Exclamou Policarpo.

A bonequinha não perdeu tempo e desandou a falar.

– Para começar, precisamos que o herói nos leve até seu antigo reino do Mato-Virgem…

O Mato-Virgem, onde Macunaíma certa vez imperou, em boa parte já não mais era a exuberante mata intocada, verdejante e cheia de vida.

Uma série de clareiras fora aberta, onde um complexo de mineração se instalou. Tudo sob o controle de agentes do D.R.F. (Departamento de Realidades Fantásticas) fortemente armados, apesar de em pouco número.

O minério extraído é nada mais nada menos que o pó de pirlimpimpim, ainda em estado bruto, sem ter sido manipulado pelas fadas.

***

– Senhor! Senhor! – Exclamava um agente ao seu superior. – Encontramos estes dois aqui perambulando pelas imediações da base de operações!

– Muito bem. – Respondeu o superior que parecia se tratar do responsável pela segurança local. – Digam seus nomes!

– Eu me chamo Policarpo e acompanho esta boneca.

– Um homem dessa idade andando por aí com uma bonequinha!? – Disse em meio a risadas o agente superior.

– Acontece que eu não sou uma bonequinha qualquer, viu? – Retrucou Emília erguendo o punho cerrado.

O agente superior calou-se boquiaberto por um momento, mas não perdeu a compostura.

– Já devia esperar por algo assim. Dentro da agência já vi muitas coisas estranhas, mas este departamento é dos mais esquisitos. Eles já foram revistados?

– Sim senhor! Não encontramos muita coisa com eles, além de um pouco de pó nos bolsos, esta caixa cronal e nenhuma identidade.

– Devem ser espiões; provavelmente pertencem ao grupo que a chefia tá doida pra encontrar. Mal sabem o que lhes aguarda. Leve eles para o chefe! Ele vai saber como cuidar deles!

Dito e feito. Em pouco tempo, Policarpo e a boneca foram levados a uma pequena sala dentro dos escritórios da Intempol.

Chegaram lá com a ajuda das tais caixas cronais, e puderam entender melhor como funcionavam aqueles artefatos pretos, notando que dependiam dos respectivos cartões. E os números desenhados, quando pressionados, é que ativavam os artefatos. Parecia uma espécie de mágica ou geringonça de tempos futuros.

De qualquer forma, lá estavam ambos escoltados por dois agentes da Intempol, dentro do que parecia ser uma antessala, e defronte a uma imensa porta dupla onde se podia ler em uma plaqueta: “Chefe do Departamento de Realidades Fantásticas”.

Ao lado da enorme porta, uma mesa com uma cadeira, onde uma bela mulher se sentava, compunham a única mobília da antessala.

– Vocês querem ver o chefe? – Perguntou a mulher, que lixava as unhas, sem sequer olhar para eles.

– Sim! Avise-o que trazemos prisioneiros. Possivelmente, parte do grupo que ele está à procurando. – Respondeu um dos agentes.

– Mas, depois disso, estarei livre e posso ir contigo aonde você quiser. – Completou o outro.

A mulher deu um ligeiro sorriso e falou para uma pequena caixa.

– Senhor? Tem dois agentes aqui com prisioneiros. O senhor quer vê-los?

Uma voz grave respondeu da caixa.

– Mande-os entrar!

As duas metades da porta, que juntas, Policarpo deduzia, deviam somar uns 5 metros de largura por 9 metros de altura, se abriram sozinhas, apenas com o simples toque de um dos agentes na parede ao lado.

Adentrando a sala, Policarpo e a bonequinha se sentiram como que reduzidos. Tudo em seu interior era imenso. E logo perceberam por quê, ao verem o imenso sorriso cheio de dentes do que parecia ser o chefe do D.R.F. Ele vestia um terno bem costurado, possuía um grande bigode e agachou-se para recepcioná-los.

– Prazer em conhecê-los. Sou Venceslau Pietro Pietra. Eu os aguardava há algum tempo.

Peri e Rodrigo Cambará já estavam posicionados para atacar os agentes que faziam a segurança do complexo de mineração. Ambos empunhando suas armas e esperando o sinal do Herói, que entraria trazendo ajuda, vindo pelo outro lado da principal clareira.

Mas já fazia muito que esperavam e Rodrigo Cambará dava murros nas árvores ao redor e esbravejava.

– Maldito folgado! Já está atrasado! Deve ter nos enganado e já ganhou o mundo. Ficaremos os dois aqui dando sopa para sermos capturados também.

– Acalme-se. – Peri contemporizava. – O herói não deve ter ganhado esse título sem razão.

– Pois eu digo q…

– Espere! Está escutando?

– …

– Vindo do mato, além da clareira.

Os dois começaram a buscar com os ouvidos a origem exata do barulho que para Rodrigo soava como uma cavalaria a toda a carga.

Logo começaram a despontar aves em grande revoada por sobre as copas das árvores, intensificando ainda mais o barulho que já chamava a atenção de todos que trabalhavam na mineração. Todos se voltaram para um ponto limítrofe da clareira de onde saiu naquele instante Macunaíma correndo como o diabo da cruz. Peri e Rodrigo conseguiram reconhecê-lo apenas pelo seu vulto, que cruzava a clareira e, num piscar de olhos, surgiu atrás dos dois.

– Olá! – Saudou o herói um pouco esbaforido.

Seus dois companheiros, ainda boquiabertos e com os olhos arregalados, ainda olharam mais umas duas vezes para a clareira buscando o herói que já estava ali.

Mas o estrondo aumentava cada vez mais da direção de onde Macunaíma surgira. Não eram apenas as aves que revoavam. As copas das árvores próximas à clareira chacoalhavam cada vez mais. Já era possível sentir um leve tremor no chão.

– Não foi fácil, mas consegui reunir a todos! – Disse o herói retomando o fôlego. – Tive de correr todo o país numa perna só em duas horas, mas… Opa! Aí vêm eles!

O herói sumiu no exato instante em que surgiu da mata uma turba dos mais variados seres.

Peri conseguiu reconhecer dentre eles: o Currupira Cobra Preta formiga tracuá Capei um mar de formigas saúva Oibê Caiuanogue… Mas a maioria era indiscernível até mesmo para ele que crescera escutando tantas lendas.

A balbúrdia se instalou, pois de imediato os agentes que faziam a segurança do local começaram a disparar contra as criaturas invasoras, o que se mostrou um grande erro, uma vez que estes são os seres que regem as leis por todas as matas e neste momento estavam todos furiosos e frustrados por terem perdido o herói de vista.

Uma batalha teve início. Alguns agentes morreram sem sequer saber o que os atingiu, enquanto outros tiveram tempo apenas de fugir usando seus cartões cronais.

***

Rodrigo e Peri, ainda paralisados tal como Macunaíma os encontrara, e sem se atreveram a pisar na clareira onde aquela força da natureza devastava tudo em seu caminho.

Num estalo, Rodrigo Cambará voltou a si e cutucou Peri.

– Vamos! O que estamos esperando? Temos de correr para o centro de comando, enquanto Macunaíma distrai os guardas!

Ambos pularam dentro da clareira e correram na direção da cabana que, como haviam previamente observado, servia de centro de operações local. Por sorte esta ficava um pouco afastada da batalha que agora era travada.

Já estavam a poucos metros da cabana, quando viram sair de dentro dela um sujeito parrudo e bigodudo vestindo um terno de fino corte.

– Parece ser este o tal Piaimã! – Gritou Rodrigo para Peri. – Se parece com a descrição!

Os dois continuaram a correr na direção da porta diante da qual o sujeito estava agora parado encarando-os com ódio no olhar.

Mas a dupla logo estancou e ambos pararam boquiabertos olhando para o alto.

– Mas parece que Macunaíma esqueceu-se de nos avisar sobre um detalhe… – Murmurou Peri.

É verdade. O herói não mencionara que Piaimã era um gigante em sua forma natural, e sentindo-se ameaçado cresceu de novo até atingir toda sua enormidade.

Quando me disseram que tínhamos problemas por aqui, não imaginei que fossem tantos! – Exclamou o gigante.

– Atire! – Ordenou o gaúcho.

Nem balas ou flecha feriram o gigante, que com apenas uma das mãos protegeu-se dos disparos e inclinou-se na direção de seus dois oponentes, que saíram em disparada.

– Acham que podem fugir de mim? – Gritava o gigante. – Pois vou prendê-los junto com os outros dois que capturei há pouco. E não duvido que Macunaíma esteja por aqui. Logo será a vez dele!

***

A prisão dos homens que nunca existiram era o destino de Policarpo e Emília. Eles foram encaminhados para o mesmo conjunto de celas onde estavam os amigos da boneca, cada qual em sua própria cela.

– Por favor, seu guarda. – Resmungava Emília. – Poderia me deixar falar uma última vez com meus amigos?

– Não posso.

– Mas ficarei confinada a minha cela e nunca mais poderei vê-los, deixe que ao menos me despeça deles.

O agente parou e olhou nos olhos caídos e lacrimejantes da bonequinha.

– Muito bem, mas que seja rápido.

Emília passou por cada uma das celas e disfarçadamente chamou a atenção de cada um dos seus amigos para a costura solta em seu braço. Acontece que, ao invés de macela, o que saia pelo buraco era pó de pirlimpimpim, do qual cada um pegou um bocado.

Emília despediu-se também de Policarpo e, assim que ambos foram trancafiados em suas celas, todos cheiraram o pó.

O carcereiro boquiaberto pode ver apenas seus rostos sorridentes sumindo sem explicação.

Todos voltaram sãos e salvos para o seu recanto no sítio, mas Policarpo e sua companheira ainda tinham de ir ao encontro de seus companheiros lá no Mato-Virgem.

Peri e Rodrigo Cambará corriam já bastante esbaforidos, enquanto Piaimã os atiçava.

– Hoje mesmo preparo uma janta como há muito não tinha!

– É um Deus nos acuda! – Berrava o Rodrigo Cambará. – Herói de bosta esse Macunaíma!

– E pelo visto, o gigante ainda por cima é comedor de gente! – Concluía Peri.

– Parado aí! – Exclamou uma voz logo atrás da dupla que, só depois de perceberem que o gigante parara, resolveram olhar e ver que ali estava o herói cheio de pose com um dos braços estendido encarando firme Piaimã.

– Por fim, apareceste, Macunaíma! – Exclamou Piaimã com um olhar de satisfação.

– Mas agora tu num pega meu Muiraquitã nem que a vaca tussa! – Respondeu o herói dando as costas para o gigante.

– É isso que veremos!

– Ó eu aqui! Ó eu! – Desandou a gritar o herói acenando para a turba que o perseguira até ali e que já ia lá pelo outro extremo do complexo de mineração revirando tudo em busca do herói. Mas voltaram de imediato e dispararam na direção de Macunaíma.

Piaimã, que só agora se deram conta do que estava causando aquela confusão na clareira, arregalou os olhos e se deteve por um momento. Foi quando o herói virou um grilo e bem à vista de todos pulou dentro do terno do gigante.

Num instante Piaimã, o comedor de gente, foi coberto por todos: Currupira Cobra Preta formiga tracuá Capei um mar de formigas saúva Oibê Caiuanogue… Todos os desafetos que Macunaíma colecionara ao longo de sua existência. Eles em pouco tempo rasgaram por completo as roupas do gigante, mas seguindo sem sinais do herói acabaram por devorar Piaimã na esperança de que dentre aqueles restos estivessem os do herói.

***

Policarpo e Emília surgiram em meio a uma grande nuvem de poeira que baixava lentamente, enquanto os últimos dos algozes do herói se retiravam da clareira, alguns cabisbaixos, outros sorridentes, mas todos de bucho cheio.

Mais afastados estavam o gaúcho e o índio, sentados, pálidos e com os queixos no chão após presenciar uma cena que não saberiam descrever, não apenas pela violência, mas pela rapidez com que se deu.

– Que se passa por aqui? – Perguntou Emília.

– Veem aquela mancha vermelha? – Murmurou Peri sem desviar o olhar para os recém chegados. – Foi o que sobrou de Piaimã e do herói.

– Quer dizer que ambos morreram? – Exclamou Policarpo.

– Foi terrível… – Declarou um chocado Rodrigo Cambará.

– E os seus amigos? – Perguntou Peri.

– Estão a salvo no Sítio. Tudo correu como esperado. – Respondeu Emília. – Apenas nos certificamos que estavam a salvo e viemos “correndo” pra cá.

Os quatro companheiros se abraçaram e lá ficaram sentados juntos, olhando pensativos para a enorme mancha de sangue. A área de mineração havia se esvaziado.

***

O grupo não pode contemplar aquela cena por muito tempo ou sequer dizer algumas palavras em homenagem a Macunaíma e seu sacrifício, porque em poucos segundos e bem perto deles surgiu um clarão que se abriu na forma de um retângulo de pé, que se alargou para ambos os lados até ficar com mais ou menos um metro de largura.

Observando melhor, os quatro notaram que aquilo não era um clarão apenas, mas uma espécie de passagem e, do outro lado, estava um pequeno aposento quadrado. Ao lado da passagem, do lado de dentro, surgiu um preto velho trajando calça e camisa brancas de pés descalços e uns colares no pescoço. Ele estava sentado num tamborete de madeira.

O velho sorriu mostrando seus poucos dentes e acenou com uma mão trêmula pedindo que eles adentrassem o aposento.

– Só pode estar doido se pensa que… – Exclamou Rodrigo, que logo se calou ao encarar o olhar de censura do velho.

– Seja quem for. – Disse Policarpo. – Algo me diz que ele foi mandado pela Intempol.

O velho voltou a sorrir sutilmente.

– Vamos fugir! – Exclamou Emília.

– Não! – Interveio Policarpo. – Fizemos o que tínhamos de fazer. Isto só demonstra que nossos antagonistas já nos têm ao seu alcance.

– Tens razão. – Completou Rodrigo Cambará. – Podemos continuar a fugir até que o pó se acabe, e então… Melhor encará-los desde já. Vamos olhá-los nos cornos e tirar tudo a limpo.

Todos os quatro se entreolharam, e optaram por fazer a vontade do estranho velho.

Por dentro, o ambiente era bem iluminado e, tão logo os quatro estavam do lado de dentro, o velho pegou um cachimbo e enquanto pitava tocou alguns números semelhantes aos das caixas que os agentes da Intempol possuíam, a diferença é que estes estavam num canto de uma das paredes do aposento. Em seguida, notaram portas metálicas deslizantes se fechando sozinhas, o que foi seguido por uma ligeira pressão vinda do chão do aposento, levando-os a crer que tudo aquilo havia se colocado em movimento vertical para o alto.

Foram alguns segundos e logo sentiram pela pressão do piso que a sala parara de se movimentar. Então as portas metálicas se abriram para outro aposento.

O velho, seguiu pitando seu cachimbo olhando para a passagem sem emitir um pio. Sequer olhou duas vezes para os quatro.

Novamente o velho fez um gesto com a mão, só que agora os convidando a sair, e assim eles o fizeram.

Já do outro lado o grupo estava em uma grande sala decorada com luxo e brilho. Seus olhares foram atraídos para um indivíduo sentado ao lado de uma mesa enorme e muito bem trabalhada.

Quando se deram conta, a passagem e o aposento onde estava o preto velho sumira.

O ser do outro lado da mesa possuía formas humanoides, mas sua aparência era no mínimo bizarra. Ele sequer se deu ao trabalho de se levantar, e começou a falar.

– Não me perguntem nada. Sei muito bem quem vocês são e por hora não vem ao caso minha identidade.

– …

– Eu tenho que parabenizá-los pelo brilhante desempenho! Por um momento achei que não conseguiriam, mas vocês são de fato extraordinários! Mesmo tendo me custado um valoroso membro da organização.

– …

– Mas, ainda assim, os trouxe até aqui para propor-lhes que substituam Venceslau Pietro Pietra dentro da Intempol. Tenho certeza que saberão assumir as funções do falecido com muito mais eficiência. O que acham?

– O quê?! – Disparou Emília. – Primeiro nos perseguem, prendem meus amigos, e agora querem nos contratar para prosseguir com seus serviços de banditismo?!

– Ela está certa! – Apoiou Rodrigo. – Por mim acabo com vosmecê aqui mesmo!

– Aconselho a não tentarem nada do gênero aqui. – Respondeu a criatura sem sequer piscar ante à ameaça do capitão. – Garanto que seria ineficaz e as consequências para vocês seriam devastadoras.

– Arre!

– Calma, Rodrigo! Vamos escutar o que o-o… sujeito tem a dizer. – Disse Policarpo.

– Bem pensado. Lamento que tenham nos conhecido dessa forma, mas asseguro-lhes que tudo isso não foi nada mais nada menos que a consequência do mau direcionamento dado por Venceslau ao departamento do qual ele era encarregado.

– Então, por favor, nos diga qual exatamente é a função do tal departamento. – Perguntou Policarpo.

– A Intempol é uma enorme agência que zela pelo futuro, presente e passado. Somos os detentores da tecnologia de deslocamento temporal. Como em qualquer organização, nossas atividades são divididas em setores e departamentos. O D.R.F., ou, se preferirem, Departamento de Realidades Fantásticas, é um deles, e tem como função supervisionar as L.T.A.s, ou melhor dizendo, Linhas Temporais Alternativas, dentro dessas realidades e assegurar que nada saia do controle.

– Mas então por que toda a movimentação em torno do pó de pirlimpimpim? E por que invadiram o Sítio da boneca? – Tornou a perguntar Policarpo.

– O D.R.F. serve também de fachada para sua mais importante tarefa, algo da qual a Intempol depende em muito. A extração do pó de pirlimpimpim nos é vital, pois esse pó é a matéria-prima para os circuitos das caixas registradoras, os aparelhos que tornam possível o deslocamento temporal. Algo de extrema raridade em qualquer outra realidade, mas que pode ser encontrado em abundância na jurisdição do D.R.F. No Mato-Virgem está nosso principal jazigo, mas o local do Sítio foi catalogado como possuidor de um grande veio do minério. Tal como certas áreas no sul do Brasil.

– E por que extrair esse minério de forma tão bruta e atacar pessoas indefesas levando-as de seus lares? – Perguntou Peri.

– Como já disse, isso tudo fazia parte da linha de ação de Venceslau, que parece tê-la adotado para atrair o tal Macunaíma para uma armadilha. Pelo que soube, ele já vinha sendo seguido há muito. Até onde sei este Venceslau é proveniente de outra L.T.A. onde ele não foi morto por Macunaíma. Mas tomando conhecimento de sua derrota nesta L.T.A. o gigante resolveu se vingar.

– Isto explica muito. – Disse Policarpo.

– Mas isto não explica o que a Intempol quer conosco. – Interpôs-se Rodrigo Cambará.

– Como já disse. Queremos que trabalhem para nós, assumindo o comando do D.R.F. que agora se encontra sem chefia.

– E vosmecê nos quer para que possamos conduzir as coisas da forma mais sutil possível, não é? – Indagou jocoso, Rodrigo.

– Sem falar na habilidade que possuem de se deslocar usando essa versão do pó que, segundo soube, é manipulado por fadas. Tal uso lhes parece simples, mas para os não nativos destas realidades de onde os senhores provém, ainda é um mistério que gostaríamos de desvendar.

– Há! Acredito! E se mesmo assim nos negarmos? – Prosseguiu Rodrigo.

– Vocês já sabem demais. Não teríamos opção a não ser matá-los. E ainda seríamos obrigados a impor restrições máximas às L.T.A.s por vocês conhecidas. Nada agradável.

Os quatro se entreolham.

– Nos daria um minuto para discutirmos entre nós sua proposta? – Pergunta Policarpo.

– Sejam breves.

O grupo confabulou rapidamente num pequeno círculo no canto do aposento, e logo chegaram a um consenso.

– Decidimos aceitar sua proposta. – Disse Policarpo aproximando-se com o peito estufado e as mãos segurando as laterais do seu paletó, como um diplomata e não uma presa encurralada num beco sem saída. – Mas existem algumas condições.

– E quais são elas? – Indagou o ser como se recitasse uma fala de uma peça de teatro que já assistira diversas vezes. Algo que poderia ser confundido com deboche, se os interlocutores pudessem se dar ao luxo de julgar qualquer coisa.

– Emília quer poder seguir vivendo no Sítio. – Respondeu Policarpo. – Peri tem mulher e filhos, para quem voltar. Rodrigo Cambará sem dúvida deseja tocar sua vida nos Pampas. Mas, em compensação, eu posso ficar, afinal de contas nada mais me resta onde morava, salvo uma ou duas pessoas queridas cuja saudade posso matar em breves visitas.

– Em todo o caso, se necessário, todos os quatro teriam de se apresentar sempre que requisitados, principalmente em casos de emergência. Todos serão nossos agentes. De acordo?

– De acordo. – Respondeu Emília.

– Que seja. – Conformou-se Rodrigo.

– Está bem. – Sorriu Peri.

– Estamos todos de acordo. – Concluiu Policarpo.

– Fico feliz em saber. – Disse a criatura com sua expressão ilegível pelo grupo. – Podem ir agora. Vocês receberão as instruções necessárias para que possam assumir o departamento.

Atrás do grupo, surgiu novamente o pequeno aposento com o preto velho, onde entraram novamente e sentiram descer.

Epílogo:

O escritório era provisório, pois dadas as proporções do antigo escritório de Piaimã, Policarpo optou por ocupar este enquanto o outro era reformado.

Sua secretária era a mesma que antes servia ao gigante. Dona Clara é a forma como Policarpo a chama.

Ontem ele esbarrou no corredor com o agente Augusto, que arregalou os olhos ao vê-lo, e ergueu as sobrancelhas quando viu pendurado no peito de Policarpo o crachá de chefe de departamento nível 5. Policarpo achou melhor não dizer nada e apenas acenou sorrindo.

O contato com os companheiros, que estão longe se dá de forma inconstante, e muitas vezes inesperada. Mas Policarpo sabe que tudo está correndo como deveria.

Emília conseguiu contatar as fadas e estas concordaram em ceder parte da produção aos cuidados de Policarpo, sob o argumento de que a atividade de mineração seria reduzida em muito, o que tem sido feito.

No momento Policarpo se encontra consumido na sua mais nova obsessão: vasculhar os arquivos da Intempol, e tentar entender qual o padrão das atividades da agência, se é que existe algum. E o que existe além do nível 5 de comando. Ele acredita piamente que um dia vai descobrir o nome do ser que os contratou, entre diversas outras curiosidades, cuja lista só faz aumentar a cada dia.

– É, tenho muito trabalho, mas tempo é o que não me falta. – Comentou consigo mesmo Policarpo entre um bocejo e outro vasculhando pilhas e pilhas de papéis, e cruzando dados na incrível máquina / artefato computador, que aos poucos aprendia a usar.

– Ai! Que preguiça… – Exclamou Macunaíma desde sua rede num dos cantos da sala.

O herói chegou um belo dia, do nada, e não se importou em dar explicação alguma, foi logo armando a rede e deitando. Desde então, só fez “brincar” com Dona Clara, dormir e dar em cima de outras “cunhãs” como ele as chama, nos corredores da Intempol.

FIM

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